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Jornalista saudita foi torturado e esquartejado ainda vivo, diz a imprensa turca

Jamal Khashoggi, crítico com o regime, abre conflito entre Ancara, Washington e Riad. A polícia turca faz buscas na residência do cônsul

A polícia turca se prepara para entrar na residência do cônsul em Istambul.
A polícia turca se prepara para entrar na residência do cônsul em Istambul.Emrah Gurel (AP)
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O jornalista Jamal Khashoggi entrou no consulado da Arábia Saudita em Istambul (Turquia) no último dia 2 para recolher um documento, e não voltou mais a ser visto com vida. Uma câmera registrou sua entrada na legação diplomática e, segundo relato da imprensa turca, existe também uma gravação de áudio que revelaria com toda crueldade que ele foi torturado e assassinado. Segundo o jornal turco Yeni Safak, de linha governista, Khashoggi “teve os dedos da mão cortados” enquanto ainda estava vivo e, finalmente, foi “degolado”.

No mesmo dia do desaparecimento do jornalista, crítico da monarquia saudita, um grupo de 15 funcionários dos serviços secretos e das Forças Armadas do reino do deserto voou para Istambul. A polícia turca, que já havia feito buscas no consulado, também entrou nesta quarta-feira na residência do cônsul saudita, Mohamed al Otaibi, que deixou a Turquia na terça-feira.

O caso Khashoggi já virou uma crise em que Riad, Washington e Ancara, principalmente, jogam suas cartas num baile diplomático em que alternam sorrisos perante as câmeras e advertências e pressões longe dos holofotes. O assunto ameaça abalar a reputação do príncipe herdeiro Mohamed bin Salman (mais conhecido pelas iniciais MBS), homem forte da monarquia saudita, que já havia toureado outras polêmicas relativas à repressão da dissidência interna, ao envolvimento na devastadora guerra do Iêmen e no bloqueio ao Qatar.

A seguir, uma reconstituição desse caso brutal e turvo.

Os fatos provados

Jamal Khashoggi procede de uma importante família bem relacionada dentro da elite saudita. Ele próprio ocupou cargos importantes, mas caiu em desgraça por suas críticas ao príncipe herdeiro e teve que se exilar em 2017. Desde então, vivia com um pé nos Estados Unidos, onde colaborava com o The Washington Post, e outro na Turquia, onde reside sua noiva, Hatice Cengiz.

Em 28 de setembro, o jornalista saudita foi no consulado do seu país em Istambul para solicitar um certificado de estado civil, necessário para se casar. As autoridades consulares lhe trataram corretamente, segundo relato de Cengiz, e lhe pediram que voltasse na semana seguinte, quando teriam o documento pronto. Foi o que o jornalista fez em 2 de outubro, às 13h14 (hora local). As câmeras de vigilância no lado de fora do consulado mostram-no entrando no edifício diplomático. E essa é a última imagem de Khashoggi com vida.

Naquele mesmo dia, em três voos diferentes, chegaram a Istambul 15 sauditas ligados aos serviços secretos, às Forças Armadas e à segurança real, segundo informação da polícia turca vazada para a imprensa. As câmeras captaram uma parte desses homens entrando no consulado uma hora antes da chegada de Khashoggi e saindo três horas depois, em vários veículos, alguns com direção à residência do cônsul saudita.

A misteriosa gravação do assassinato

Nas palavras do jornal turco Sabah, tratava-se de uma “equipe de executores” que chegou a Istambul para matar Khashoggi. De fato, fontes turcas disseram a vários meios de comunicação que dispõem de uma gravação de áudio que demonstraria como Khashoggi foi assassinado de forma selvagem. O Yeni Safak teria sido o único, até agora, a ter acesso a essa gravação. Sempre segundo informações dessa publicação, a operação foi dirigida por Salah Mohamed al Tubaigy, um especialista forense da Direção Geral de Segurança saudita. Khashoggi foi interrogado e, depois, “teve os dedos da mão cortados” enquanto ainda estava vivo, para ser finalmente “degolado”. O cônsul saudita, Mohamed al Otaibi, queixou-se do que estava acontecendo.

“Façam isto em outro lugar. Vocês vão me arrumar problemas”, ouve-se Al Otaibi dizer na gravação, segundo o jornal turco. O legista então responde: “Se quiser continuar vivo quando voltar para a Arábia Saudita, fique quieto”.

“Ouviram-se gritos horrendos”, relata também o Middle East Eye (MEE), um veículo próximo ao Governo do Qatar, citando uma fonte turca que teria escutado a gravação. Os gritos teriam parado quando algum tipo de narcótico foi administrado à vítima. Ao todo, Khashoggi teria suportado com vida sete minutos de tortura. Depois, o legista começou a despedaçar o corpo enquanto escutava música com fones de ouvido. “Quando faço este trabalho, escuto música. Vocês deveriam fazer o mesmo”, diz Tubaigy aos colegas na gravação, segundo o MEE.

Guerra de vazamentos

Muitos se perguntam por que a Turquia não divulga a gravação, já que representaria uma prova definitiva do assassinato. A resposta mais plausível é que esse áudio, se existir, foi feito de forma ilegal, provavelmente através de microfones escondidos ou utilizando algum funcionário saudita como agente duplo dos serviços secretos turcos.

Desde o começo, fontes do Governo de Ancara fizeram vazamentos à imprensa e a pessoas próximas de Khashoggi. Quatro dias depois de seu desaparecimento, já diziam que ele tinha sido assassinado no consulado; mais tarde, que havia sido esquartejado com um serrote; posteriormente que havia uma gravação que demonstrava isso. Por outro lado, publicamente as autoridades turcas se negam a comentar tais assuntos e pedem que se aguarde o final da investigação. Quem mais se aproximou de reconhecer a existência de indícios concludentes foi o ministro do Interior, Süleyman Soylu, que nesta quarta-feira, em declarações à agência de notícias Anadolu, disse que “as provas são poderosas, mas isto é trabalho da Justiça – a Justiça trará tudo isto à luz”.

Por que a Turquia age assim maneira? “O Governo turco está furioso porque o ocorrido é uma brutal violação da sua soberania e do protocolo diplomático, mas mostrar-se muito zangado em público com a Arábia Saudita tem seus riscos”, argumenta Aaron Stein, autor do livro Turkey's New Foreign Policy, em declarações ao EL PAÍS. “É óbvio que quem vaza esta informação é o próprio gabinete do [presidente turco, Recep Tayyip] Erdogan, para fazer a Arábia Saudita sentir a pressão da comunidade internacional.”

Investigação

Como as legações consulares são consideradas invioláveis, conforme estipula a Convenção de Viena para as Relações Diplomáticas, a polícia turca não podia fazer buscas no consulado sem autorização do Governo saudita, que a concedeu nesta segunda-feira, quase duas semanas depois do desaparecimento de Khashoggi, e depois de numerosas negociações entre Ancara e Riad. Os turcos precisaram concordar em trabalhar em conjunto com uma equipe de agentes sauditas enviados do seu país.

A operação de buscas no consulado teve início na segunda-feira, e na terça-feira os sauditas fizeram os investigadores turcos esperarem em vão durante horas para entrar na residência do consulado-geral. Sem terem acesso, eles desistiram e foram embora por volta de meia-noite. Nesta quarta, por outro lado, a polícia científica turca foi autorizada a entrar.

O presidente turco disse na terça-feira que foram buscados vestígios de substâncias “tóxicas”, supostamente usadas para dissolver o corpo do jornalista, e também que algumas provas haviam sido manipuladas “pintando sobre elas”. Mas a investigação, durante a qual foram colhidas numerosas amostras e usou-se o produto químico luminol para encontrar rastros de sangue, conseguiu detectar “certas provas” do crime, segundo relato de uma fonte turca à agência AP.

Livrar a cara de MBS

Enquanto os investigadores turcos se preparavam para entrar na sua residência, o cônsul-geral saudita em Istambul, Al Otaibi, tomava na terça-feira um voo de volta a Riad. O Ministério de Relações Exteriores turco afirmou que não o expulsou, e tampouco quis declarar que ele fugira, dando a entender, em vez disso, que foi chamado a consultas pelo Governo saudita.

Ainda não se sabe quem arcará com essa morte. Vários meios de comunicação norte-americanos publicaram nesta semana que a Arábia Saudita poderia reconhecer o crime, mas atribuindo-o a elementos “incontrolados” dentro dos serviços secretos, que teriam agido sem o conhecimento da cúpula saudita. Isso permitiria que MBS livrasse a sua cara.

A diplomacia norte-americana também parece estar trabalhando neste sentido, com a recente visita do secretário de Estado, Mike Pompeo, a Riad. O próprio presidente dos EUA, Donald Trump, disse no Twitter que conversou com o príncipe herdeiro e que este “negou qualquer conhecimento do ocorrido no consulado”. E, em uma entrevista à AP, criticou que MBS seja tratado como “culpado até prova em contrário”.

Entretanto, é improvável que uma ação de tal magnitude dos serviços secretos sauditas ocorresse sem o conhecimento de um príncipe que demonstrou controlar muito bem o que ocorre no Reino do Deserto. De fato, uma investigação do The New York Times revelou que pelo menos 3 dos 15 agentes enviados a Istambul pela Arábia Saudita em 2 de outubro faziam parte do primeiro círculo de segurança pessoal do príncipe Bin Salman, e que outro foi fotografado com ele em visitas a Madri, Paris, Boston, Houston e Nova York.

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