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ENTREVISTA INÉDITA COM DAVID FOSTER WALLACE

“Graça Infinita’ é uma tentativa de entender a tristeza inerente ao capitalismo”

A Morte de David Foster Wallace, um dos escritores mais influentes da narrativa contemporânea, completa uma década nesta quarta. Eduardo Lago recupera agora uma conversa com esse autor ‘cult’, perdida durante anos

David Foster Wallace, nascido em 1962 em Ithaca (Nova York), foi um dos narradores mais influentes do panorama literário internacional das últimas décadas, e sua principal obra, Graça Infinita, um romance que transborda as mil páginas e incorpora mais de 400 notas, as quais constituem outras tantas ramificações tentaculares da narração central, representou um marco na história da literatura recente. Transformado em um mito que transcende a esfera literária, sua influência sobre narradores de todas as latitudes só fez aumentar com o transcurso do tempo. Nesta quarta-feira, 12 de setembro, completam-se 10 anos de sua morte. As circunstâncias daquele trágico fato são bastante conhecidas. Naquela tarde, sua mulher faria a vernissage das suas obras pictóricas numa galeria próxima de Claremont, Califórnia, onde o casal vivia. De maneira um tanto inesperada, na hora de sair David Foster Wallace anunciou que preferia ficar em casa. Quando sua mulher voltou, o encontrou enforcado na garagem da residência. Sua reputação vinha crescendo de maneira paulatina, fazendo dele um ícone do que deveria ser a literatura do futuro. Graça Infinita não é senão parte de um legado enormemente rico e complexo, que inclui obras fundamentais também no âmbito da não ficção. A entrevista inédita que o EL PAÍS publica hoje é parte de uma série de conversas que mantive com o autor durante vários anos a partir de 2000, e que foram incluídas no livro Walt Whitman Ya No Vive Aquí (que será lançado na semana que vem na Espanha pela editora Sexto Piso). Uma delas já havia saído em 2002 no EL PAÍS. Outras gravações dos encontros ficaram perdidas entre os papéis durante mais de 15 anos. Recentemente recuperei uma das fitas ao arrumar meu escritório no Sarah Lawrence College.

O escritor David Foster Wallace, em 1997.
O escritor David Foster Wallace, em 1997.Steve Liss (GETTY)

Março de 2000

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Pergunta. Já sei que neste momento você não está dando aulas na universidade, mas gostaria de lhe perguntar sobre os livros cuja leitura costuma exigir dos alunos quando oferece cursos de escrita criativa.

Resposta. Utilizo todo tipo de texto. Nos cursos para iniciantes uso uma antologia que inclui os contos A & P, de John Updike; Five-Forty-Eight, de John Cheever; Aqueles Que se Afastam de Omelas, de Ursula K. Le Guin; A Loteria, de Shirley Jackson… Ou seja, contos convencionais que figuram em todas as antologias. Em algumas ocasiões tentei mostrar obras de ficção mais ambiciosas, textos estranhos ou difíceis, mas os alunos iniciantes não estão suficientemente preparados para encará-los, de modo que a experiência nem sempre dá certo.

Aos alunos de graduação ofereço cursos temáticos, então as leituras dependem do desenho do curso. Mostrei muito Cormac McCarthy, por quem sinto uma grande admiração, Don DeLillo, William Gaddis… Quem mais? Bastante William Gass, embora em geral seus primeiros livros. E muita poesia… Não sou poeta, mas sou um ávido leitor de poesia, então ensino muita poesia contemporânea.

P. Você se considera um escritor acessível? Sabe que tipo de leitor se aproxima de seus livros?

R. Acho que a ficção que escrevo é bastante acessível, embora seja dirigida a gente que gosta realmente de ler e considera a leitura como algo que exige disciplina e esforço. Como você deve saber, quase tudo o que se publica nos Estados Unidos são livros que às vezes podem ser bons, mas cuja leitura não exige muito esforço, o equivalente a ir ao cinema para ver um filme divertido. Quase todo o dinheiro que a literatura gera procede de livros que as pessoas leem quando viajam de avião ou estão na praia. Meus livros não são assim. A maior parte dos narradores americanos com quem me relaciono escreve ficção mais difícil e exigente. Acho que sou dos mais acessíveis, pela simples razão de que ao escrever não procuro intencionalmente complicar as coisas, pelo contrário; procuro que sejam as mais simples possíveis. Há um tipo de ficção, na minha opinião muito boa, que busca deliberadamente ser difícil; obriga o leitor a encarar certo tipo de estratégia, mas eu não escrevo assim, por isso não costumo ser situado no campo dos escritores particularmente difíceis. Costumo ser situado, ou assim acredito, entre os escritores mais acessíveis, embora faça parte de um grupo que de saída não cabe considerar exatamente acessível, um grupo que cultiva um tipo de literatura que exige que os leitores tenham certa preparação e um amor genuíno pelos livros, gente que quando lê se implica esteticamente e para quem a literatura é algo mais do que um passatempo.

P. Segundo você, Graça Infinita é um romance essencialmente impregnado por um sentimento de tristeza. Poderia aprofundar um pouco essa ideia? Que outras intenções você tinha quando começou a escrevê-lo?

R. O que quero dizer com isso, a propósito da cultura americana, em particular para os jovens, é que, do ponto de vista material, os Estados Unidos são um lugar magnífico para viver. A economia é muito poderosa e há uma grande abundância de recursos. Quando comecei a escrever Graça Infinita eu tinha trinta anos, pertencia à classe média-alta, era branco, nunca tinha sofrido nenhuma forma de discriminação, desconhecia qualquer forma de pobreza da que eu não fosse o causador, e a maior parte dos meus amigos se encontrava numa posição parecida. E, entretanto, a tristeza é algo tangível, está aí, é uma realidade. Há uma certa… qual seria a palavra? Uma desconexão ou alienação entre as pessoas que têm menos de 40 ou 45 anos neste país. Poderíamos dizer que o mal-estar remonta a Watergate ou ao Vietnã, embora haja muitas outras causas. Graça Infinita tenta abordar o fenômeno da adição, tanto aos estupefacientes como na acepção original da palavra em inglês, adição no sentido de devoção, num sentido quase religioso. Meu romance é uma tentativa de entender uma espécie de tristeza que é inerente ao capitalismo, algo que está na raiz do fenômeno da adição. O motivo pelo qual insisti na ideia de que Graça Infinita era um livro presidido pelo signo da tristeza é porque, quando começaram a me entrevistar pouco depois da sua publicação, todo mundo insistia que era um livro muito divertido, coisa que eu não entendia e me intrigava, mas honestamente também me decepcionava, porque para mim o sentimento dominante do livro é uma imensa tristeza.

P. Como definiria sua geração literária?

R. Meu Deus!

P. Supondo que você acredite em algo assim.

R. Poderia precisar um pouco mais a pergunta? Quais seriam os escritores da minha geração afins a mim?

P. Por sua idade, você faz parte de um grupo que herdou uma tradição literária que os escritores como você estão tentando transformar. Há muitas maneiras de entender a literatura, mas é evidente que entre os jovens escritores americanos de hoje há muitos que estão tentando escrever ficção de outra maneira. Você se sente parte de um grupo assim, e que papel seu trabalho desempenharia dentro desse grupo?

Capa do novo livro de Eduardo Lago
Capa do novo livro de Eduardo Lago

R. A verdade é que não sei. As primeiras vezes que me perguntaram isso eu era muito jovem, pertencia àquela que era então a geração mais recente de narradores americanos, mas depois vieram outros… Na narrativa americana surge uma nova geração a cada cinco ou sete anos. Costumo ser associado a gente como William T. Vollmann, Richard Powers, Joanna Scott, A. M. Homes, Jonathan Franzen e Mark Leyner. Todos beiram os quarenta anos, Powers e Scott têm um pouco mais de quarenta, eu tenho trinta e oito. Todos começamos a publicar mais ou menos na mesma época. Como grupo somos um percentual bastante pequeno, a maioria dos escritores jovens na ativa cultiva o que chamo de Realismo, com maiúscula, escrevem de maneira tradicional, na terceira pessoa, sob o olhar limitado a um narrador onisciente, com um personagem e um conflito centrais. É um tipo de ficção estruturado da maneira clássica. Dos escritores com os quais sou associado existem alguns, entre os que acabo de mencionar, com quem tenho algo em comum. Especialmente, ao irmos à universidade fomos expostos a toda uma série de correntes, em primeiro lugar a teoria literária europeia, e em segundo lugar o que se entende por ficção americana pós-moderna, ou seja, Nabokov, DeLillo, Pynchon, Barth, Gaddis e Gass, todo esse grupo. Ter sido exposto a esses dois tipos de influências torna constitutivamente mais difícil escrever de maneira tradicional, porque a verdade é que parte da melhor ficção pós-moderna clássica, para mim, fez saltar pelos ares a credibilidade do realismo clássico e suas estratégias. Conversei o suficiente com um desses escritores, no caso Richard Powers, para pensar que está de acordo com o que digo. Na minha opinião, o que se entende por “pós-modernismo americano clássico”, também conhecido como “metaficção”, uma forma elevada de ficção que às vezes tem tintas surrealistas, é de uma utilidade muito limitada, ou seja, sua tarefa essencial, me parece, consistiu em destruir o modelo herdado, em aplainar o caminho fazendo explodir uma enorme quantidade de hipocrisias e convenções, mas literariamente o resultado em seguida se transforma em algo muito chato. Por exemplo, os primeiros livros de John Barth me parecem interessantes, mas depois o que ele fez foi repetir à exaustão certas técnicas e obsessões. Na minha opinião, Barth é o exemplo mais vívido de por que eu, assim como todos os escritores que mencionei antes, não nos sentimos cômodos com a ideia de continuarmos cultivando o tipo de ficção que os pós-modernos faziam. Chegou-se a um ponto limite. Por outro lado, aquela maneira de entender a literatura nos influenciou muito, e por isso, ao menos no meu caso, não é possível ver, entender nem tentar capturar ou refletir o mundo através do molde da ficção realista clássica.

P. Certo…

 R. O que quero dar a entender com tudo isso é que provavelmente o grupo em que sou incluído está sob a poderosíssima influência do pós-modernismo, tanto o americano como o europeu. Estou pensando em escritores como Calvino. Também fomos influenciados por alguns escritores latino-americanos, como Borges, Márquez e Puig. De qualquer forma, acho um pouco desconfortável falar de mim mesmo como parte de um pós-modernismo intelectual de vanguarda, como um movimento padrão cujo objetivo é escrever um tipo de ficção que não corresponda ao uso de fórmulas tradicionais, mas, ao mesmo tempo, busque que a escrita tenha uma textura emocional em vez de se limitar a pôr em prática meros jogos de linguagem ou brincar com paradoxos cognitivos, uma forma de escrita que continue tendo relação com a experiência do que significa ser, em particular, americano, procurando evitar escrever à maneira tradicional de pessoas como John Updike ou John Cheever. Ugh! Que grande confusão o que acabei de falar ... O que eu disse faz algum sentido? De qualquer forma, espero que você edite bem.

P. Entende-se perfeitamente bem, não se preocupe.

 R. De qualquer forma, gostaria de esclarecer uma coisa: eu me sinto um pouco desconfortável falando em nome de todos os escritores que mencionei. Esta não é minha intenção. É apenas meu jeito de explicar por que as pessoas tendem a nos agrupar.

P. Ficou claro. Mudando de tema, por que dá tanta atenção ao tênis no que escreve?

R. Como?

P. Por que o tênis ocupa tanto espaço na sua obra?

R. Receio que a explicação não seja muito interessante. É o único esporte de que entendo alguma coisa. Eu cresci me dedicando ao tênis competitivo. Simplesmente sei muito sobre tênis e o acompanho com mais avidez do que qualquer outro esporte. Acho que, além de alguns ensaios e em Graça Infinita, não escrevi sobre tênis. De qualquer forma, as razões pelas quais o tênis ocupa um lugar tão importante em Graça Infinita não são autobiográficas, mas têm a ver com a estrutura geral do livro.

P. O que você quer dizer exatamente?

R. Agg ... Eu tenho medo de ter caído em minha própria armadilha sem perceber ... Vamos ver ... Uma maneira muito simples de explicar isto seria falar sobre a ideia de movimento, um movimento constante, mas dentro de um conjunto de limitações claramente definidas. Também está relacionado à ideia de dualidade, com a existência de um movimento que opera em duas direções, para frente e para trás, indo e voltando entre dois espaços separados, de tal forma que uma forma geométrica é criada ... algo assim.

P. Poderia falar sobre a relação entre as possibilidades da ficção e da televisão?

R. Deixe-me pensar por um momento ... Escrevi o ensaio que você tem em mente no início dos anos 1990 e só foi publicado em 1993. Para ser completamente honesto, vou lhe dizer que não tenho televisão há anos. Às vezes, vejo um pouco de televisão quando vou à casa de um amigo, mas a verdade é que há muito tempo não estou a par do que as pessoas estão interessadas. O objetivo do meu ensaio sobre a televisão foi em grande parte articular as preocupações que compartilho com alguns dos jovens escritores americanos que mencionei anteriormente ... Não sei como poderia resumir em algumas frases a relação entre a televisão e a ficção em 2000. Acho que a resposta mais interessante seria dizer que a ficção literária séria dos Estados Unidos mantém uma relação de amor e ódio muito complicada com o entretenimento comercial predominante em nossa cultura, o que não me parece uma surpresa para os europeus. Não é apenas uma questão econômica, mas também estética, e também tem a ver com o fato de que nos propomos a produzir coisas e às vezes entreter as pessoas, mas também somos uma geração que cresceu assistindo à televisão e entendendo a nós mesmos como parte de uma audiência, de modo que, além de dizer que tenho certeza de que provavelmente ainda há uma conexão muito íntima entre as duas mídias, acho que, com a explosão de novas tecnologias e da Internet, a ideia de "entretenimento interativo" faz com que a relação entre ficção e televisão hoje seja infinitamente mais complicada do que quando escrevi aquele ensaio.

P. Era a minha próxima pergunta. Como a Internet afeta a arte da ficção?

R. A questão é muito relevante. A maioria das pessoas está interessada em saber como a internet pode afetar o negócio editorial. Eu pessoalmente acredito que a internet não é mais que uma avalanche descomedida de informação e entretenimento, um acúmulo de sensações com muito pouco critério quando se trata de ajudar os consumidores a escolher, encontrar ou discernir entre as opções disponíveis para eles no meio de um turbilhão verdadeiramente raivoso de fervor capitalista. Isso é assim não só pelo modo como a internet opera, mas também pela maneira como se investe nela. Não preciso lembrá-lo da explosão do "pontocom" que atingiu o mercado de ações e coisas assim. Nesse sentido, eu acho, como um mero observador leigo, que a Internet não é nada mais do que a destilação de ética capitalista americana em estado quimicamente puro, um aluvião de possibilidades sedutoras para se escolher. A Internet é a entronização absoluta do laissez-faire, sem a presença de ferramentas verdadeiramente eficazes que permitam escolher ou pesquisar. Todo mundo está infinitamente mais interessado nos aspectos econômicos e materiais da Internet do que nos éticos e estéticos, pelas dimensões morais e políticas inerentes. Em suma, não consigo pensar em uma maneira melhor de resumir os pontos fortes e fracos dos Estados Unidos hoje. Quanto à ficção, eu suponho que haverá muitos escritores interessados na internet como uma ferramenta para criar ficção, mas, até onde eu sei, o único que fez isso até agora é Richard Powers em Galatea 2.2 e num livro que acabou de ser lançado, Plowing the Dark, que tem a ver em parte com a realidade virtual ... Powers, especialista em cibernética, é o único entre nós que desenvolveu maneiras eficazes de usar a rede como uma ferramenta real na ficção. Os demais ficam à margem, um pouco assombrados ao ver as expectativas despertadas por um fenômeno que na realidade nada mais é do que um exagero de tudo o que tivemos até agora. Faz algum sentido o que estou dizendo?

P. Claro... Mudando de assunto, você vê algum paralelismo entre a sua visão como escritor e a visão de um cineasta como David Lynch?

R. Muito boa pergunta. Não sei. Escrevi um artigo sobre David Lynch em que acho que descobri por conta própria algumas coisas sobre ele e cheguei à conclusão de que é quase um expressionista clássico. Acho que Lynch, e o cinema artístico em geral, efetua uma exploração quase surrealista no sentido clássico, em virtude da qual há muito mais associações oníricas e literalmente inconscientes do que as que se dão, penso eu, na ficção de vanguarda, moderna, pós-moderna, ou como quer que a chamem. A ficção opera de maneira bem mais deliberada e autoconsciente e ... claustrofóbica do que o cinema artístico americano. Sim, sei que ver Lynch em sua melhor forma é excitante para mim tanto como aficionado pelo cinema como escritor. Na minha opinião, David Lynch é um grande artista, assim, com maiúsculas. E não sei se entendo sua estética ou a minha própria suficientemente bem para falar em conexões ... Vi Veludo Azul quando era estudante de pós-graduação na universidade e me pareceu um grande filme. No ensaio que escrevi sobre este filme, falo sobre o impacto que teve na minha geração, um impacto que acho que foi mais emocional do que estético.

P. Você diria que Graça Infinita é o seu melhor livro?

R. Não penso nesses termos.

P. Você está trabalhando em outro romance ou pretende em um futuro mais ou menos imediato?

R. Você teria que me explicar a que se refere com isso de "estar trabalhando". Não sei qual será o próximo livro que concluirei. Costumo trabalhar em várias coisas ao mesmo tempo, a maioria das quais acaba em fracasso. Não tenho ideia de qual será o próximo projeto que conseguirei terminar.

P. O significado da minha pergunta é se os seus leitores podem esperar um livro "grande" como Graça Infinita, "grande" em todos os sentidos da palavra.

R. É uma superstição, mas não gosto de falar sobre o que ainda não terminei.

P. Acho fascinante o uso que faz das notas em Graça Infinita e em outros livros. As notas são uma marca de identidade da escrita acadêmica, mas em suas mãos elas se tornam uma inovação muito original da qual se serve para criar uma forma de narrar fragmentária. Há uma espécie de poética da nota no que faz, e em que consistiria?

R. Não acho que haja algo assim. Comecei a usar notas em Graça Infinita como uma maneira de criar um sentido adicional à "dualidade" do livro ... Uma das coisas que me parecem mais artificiais na maioria da ficção atual é que operam como se a experiência, o pensamento e a percepção tivessem um caráter linear e singular, como se só pensássemos ou sentíssemos apenas uma coisa a cada momento. Essa é justamente uma das limitações da página e acho que, até certo ponto, as notas servem para sugerir pelo menos algum tipo de desdobramento que acho que está um pouco mais de acordo com a realidade. Claro que não é algo que eu inventei. Manuel Puig faz isso em O Beijo da Mulher Aranha e John Updike em Um Mês Só de Domingos ... Em Graça Infinita acumulei uma enorme quantidade de notas e, como resultado disso, entrei em um hábito de escrita e de pensamento que me deixou dependente em excesso das notas [risos]. Nas últimas coisas que escrevi não há notas. Não tenho certeza, mas não são uma marca de identidade de nenhum tipo, mas algo a que eu recorri de modo compulsivo durante um tempo,

P. Outro aspecto extremamente interessante de seu trabalho é o uso de entrevistas falsas em Breves Entrevistas com Homens Hediondos. Pode falar sobre a gênese dessa ideia?

R. Meu Deus…! O primeiro rascunho de Graça Infinita estava cheio de entrevistas, mas no final decidi tirar a maior parte. Acho que o formato da entrevista me atrai porque gosto da ideia de transcrição, como uma maneira plausível de reduzir tudo à voz. Há ficções que consistem apenas de vozes que são dirigidas sem mediação ao leitor, mas para mim é um recurso um pouco afetado, enquanto uma transcrição é uma maneira plausível de eliminar todos os modos de representação, exceto por alguém no ato de falar. É uma maneira de permitir que o leitor conheça e perceba o personagem exclusivamente por meio de sua voz. Breves Entrevistas com Homens Hediondos funciona de forma um pouco diferente porque você só tem acesso a um lado da conversa, as respostas. Supõe-se que as respostas ajudem o leitor a deduzir a pergunta, podendo assim ter uma ideia da personalidade e da ideologia daquele que formula as perguntas, mas também não acho que obedeça a algum tipo de poética. É simplesmente uma maneira de experimentar um recurso estilístico. E também não é algo que inventei. Sei que DeLillo escreveu pelo menos algumas histórias que consistem exclusivamente em respostas. O recurso é encontrado em um texto tão remoto como My Last Duchess (1842), de Robert Browning. Qualquer forma de monólogo dramático implica uma espécie de conversa da qual apenas se escuta um lado. Fim.

P. Poderia falar um pouco sobre Signifying Rappers: Rap and Race In the Urban Present, o livro que você fez com Mark Costello?

R. Escrevi no final dos anos 80, quando Nos Estados Unidos se escutava muito o tipo de música conhecido como gangsta rap, um gênero muito violento, materialista e misógino, que se tornou popular entre todo tipo de pessoa, incluindo a juventude branca. O livro é essencialmente um longo ensaio sobre o que significa ser branco nos Estados Unidos e que você goste de ouvir um tipo de música como essa, porque os brancos se identificam ou sentem uma forte atração pela música negra dessas características, isso é tudo. É um livro muito curto. Ao longo dos anos, tive a oportunidade de entrevistar muitos escritores americanos e, em geral, me pareceu que eles são muito endogâmicos, que só conhecem o que se escreve nos Estados Unidos. É raro que estejam cientes do que está acontecendo na Europa e em outros lugares.

Eu leio por três razões: pelo trabalho, pelas minhas aulas; coisas que me servem para minha própria escrita; e por prazer. Tendo a ler pouca ficção americana contemporânea, em parte porque não quero que meu trabalho tenha a ver com o que os outros estão fazendo. Além disso, para mim não é divertido porque acho que leio de modo mais crítico do que outras coisas. Não estou totalmente a par do que acontece com a literatura europeia, ou latino-americana, ou asiática, acho que leio esse tipo de literatura tanto quanto outros americanos. A verdade é que não me sinto muito à vontade lendo traduções. Há muito bons tradutores do espanhol, o que me faz sentir menos incômodo lendo autores traduzidos dessa língua, embora a maioria das traduções que leio sejam de autores latino-americanos.

P. Acaba de ser publicado na Espanha Girl with Curious Hair. Você se sente muito longe de seus primeiros livros, como o volume em que essa história aparece, ou The Broom of the System, seu primeiro romance?

R. Eu me sinto estúpido. Não tinha nenhuma ideia de meus livros haviam sido publicados na Espanha. Eu me sinto muito distante de tudo que tenha a ver com todos os tipos de traduções, porque quando você lê uma tradução –sem a intenção de ofender, eu sei que você traduziu The Sot-Weed Factor, de Barth –, o que o leitor desfruta não é do trabalho do autor, mas do tradutor. Falo sobretudo como leitor de poesia. Se não se lê o original, não se lê nada que tenha a ver remotamente com o que o autor fez. Quanto a Girl with Curious Hair, acho que há histórias muito boas nesse livro, embora se veja claramente que o autor é alguém muito jovem.

P. De quais histórias você gosta naquele livro?

R. Ah ... A primeira, sobre o programa de perguntas e respostas Jeopardy ... é uma boa história. Também funciona muito bem, acho, a história sobre Lyndon B. Johnson. Há um conto em que alguém tem um ataque cardíaco em uma garagem. Imagino que deve ter sido difícil traduzir porque a frase é essencialmente muito longa. Não sei se alguém vai gostar, mas na minha opinião é uma história mais ou menos perfeita ... E o último texto, que em parte é sobre John Barth, eu me diverti muito escrevendo. Quando voltei a lê-lo, muitos anos depois, não gostei, mas recentemente li de novo e achei que estava muito bom [risos]. Claro, não posso fazer ideia de como essas histórias podem soar em espanhol.

P. O que você faz nessa última história, Westward the Course of Empire Takes Its Way é exorcizar John Barth. É quase um acerto de contas em que você diz a Barth: “Chegamos até aqui. Já é suficiente”.

R. Acredito que nessa história –bem, na realidade é quase um romance, um romance curto– o que proponho é trazer levar axiomas do pós-modernismo americano clássico às últimas consequências, até sua conclusão. Mas há também outra coisa: quero falar sobre a tremenda tristeza e emoção que acho que está implícita no pós-modernismo clássico quando é bom. Na minha opinião, isso é algo de que os próprios autores não estão cientes. Então, o que existe é uma espécie de relação de amor e ódio contra Barth. Quando o escrevi, tinha acabado de me formar no programa de escrita criativa da Universidade do Arizona e meus sentimentos sobre os programas de escrita eram muito confusos, eu tinha dúvidas sobre a própria existência de "escolas" nas quais você pode aprender a escrever ficção. Acho que mais do que um exorcismo de John Barth, em particular, a história é uma sátira da ficção acadêmica em geral. Nos Estados Unidos, um livro como Lost in the Funhouse: Fiction for Print, Tape, Live Voice, de John Barth, é considerado o texto sagrado do pós-modernismo, o equivalente a Terra Devastada (The Waste Land), de T. S. Eliot em relação ao modernismo, então, era um alvo fácil.

P. Retomando por um momento algumas de suas afirmações feitas anteriormente sobre sua relação com o pós-modernismo americano clássico, em sua opinião, a literatura deveria incorporar uma dose de experimentalismo, do qual surge, de algum modo, uma nova forma de realismo, embora muito distante do realismo tradicional. É algo que está relacionado ao que você acabou de dizer sobre aceitar a dimensão sentimental da escrita...

R. Sim.

P. ... Com a ideia de que a literatura visa despertar uma emoção no leitor... Nesse sentido, o que acontece exatamente com o realismo? O termo continua sendo válido nessas circunstâncias?

R. As questões que você coloca... Acho que a pergunta é muito relevante, mas sinto que sou a pessoa menos adequada para respondê-la. Tenho certeza de que você vai me entender: para mim, escrever ficção significa... Fundamentalmente me vejo como um escritor de ficção e, quando estou escrevendo, acho muito difícil e tenho muito medo de estar preocupado sobre se o que faço está vivo ou não. Não sei como explicar. Há momentos em que sinto minha própria escrita como algo vivo e real, sinto que estou conversando com os personagens e com partes de mim mesmo e com o leitor, e é uma sensação vivificante. Outras vezes, o que escrevo parece falso e pretensioso, artificial, estereotipado e então penso... Bem, isso tem a ver com meu próprio trabalho, mas, como leitor, também tenho uma sensação parecida. Falando como leitor, a ficção que mais gosto tende a apelar principalmente ao plano emocional e espiritual. Viver nos Estados Unidos no novo milênio não é estúpido, trivial ou sentimental; a emoção e a espiritualidade são coisas que devem ser alcançadas na escrita, fazendo um tremendo esforço ao longo de um processo cognitivo [risos].

P. E então?

R. ... E também há, sem a menor dúvida, um componente político importante... Não... não estou respondendo bem... A verdadeira resposta é que, o que você acabou de dizer, seria uma boa descrição do tipo de ficção que eu gosto de ler, e que, na minha opinião, quando é experimental nunca tenho essa impressão, no sentido de que não se trata de experimentar por experimentar, nem é questão de fazer qualquer engenhosidade com a estrutura, e sim que, se há uma dimensão experimental, é porque era inevitável, porque o autor não tinha outra maneira de transmitir as dimensões da experiência, emoção e conhecimento contidos no mundo da história. O que estou fazendo é tentar ilustrar o fato de que há exemplos, tanto no realismo clássico quanto na vanguarda mais experimental, dos quais eu realmente gosto e, acima de tudo como leitor, tento articular o que gosto nesses textos. Como escritor, sem dúvida é o que tento conseguir no que faço, mas, como você sabe perfeitamente, não é questão de sentar para escrever e dizer: "OK, vou fazer algo que seja experimental, mas também realista". É mais uma questão de gosto, sobre qual é o sabor quando está na boca; que sensação tenho no estômago enquanto escrevo. [...] Desculpe, acabei dando uma resposta muito longa.

P. Não, não, na verdade, é muito...

R. Suas perguntas me fazem pensar. Na verdade, acho que devemos passar um dia inteiro falando sobre essas coisas e tomando um café após o outro.

P. Bem, venho entrevistando os escritores americanos mais importantes há mais de 15 anos e gostaria de reunir todas as entrevistas em um livro, então...

R. Quando quiser, nos sentamos para conversar. A verdade é que as perguntas que você me faz dão motivo para algo mais do que uma entrevista, para uma conversa, uma na qual você responderia às minhas respostas para que fosse um diálogo até o final.

P. Sim, poderia fazer isso se não houvesse pressão do tempo como agora. São questões de muito alcance, mas agora quero fazer uma pergunta anedótica.

R. Sim...

P. Quantos anos tem a protagonista de Girl With Curious Hair?

R. Ah... [longo silêncio]... Não sei. Não digo isso na história?

P. Não. É justamente uma questão de tradução. Na versão espanhola, "girl" é traduzida como "menina", o que implica uma menina, não uma jovem.

R. De acordo com minha memória, é suficientemente jovem para que o narrador, que tem 20 e poucos anos, a veja como uma menina.

P. OK.

R. Entre 7 e 12 anos, diria. Nesse caso, a tradução é adequada.

P. Você sabia que Graça Infinita foi traduzido ao espanhol?

R. Não. Eu tenho um acordo com meu agente segundo o qual ele não me diz nada sobre minhas traduções.

P. Sério?

R. A razão é que, se estão em um idioma que sou capaz de ler e entender, é inevitável querer interferir e, se estão em um idioma que não entendo, é impossível conseguir dormir, pensando no que terão feito [risos]. Desejo sorte ao tradutor de Graça Infinita, porque, na realidade, não pode ser traduzido. O inglês é muito idiomático.

P. Concordo. Tenho uma história sobre isso. Quando terminei a tradução de The Sot-Weed Factor, John Barth me convidou para almoçar no clube da Universidade Johns Hopkins e depois o entrevistei, como estou fazendo agora com você, mas ele só comentou sobre a tradução vários anos depois, quando veio à Espanha para um encontro de literatura americana, e lhe disseram que a tradução era boa, algo que ele não tinha como saber.

R. Imagino que seja lisonjeiro ver seu trabalho traduzido, mas é algo que também me assusta.

P. Por quê?

R. Porque o leitor acredita que o texto é meu e não é assim... Posso te fazer uma pergunta?

P. Naturalmente.

R. Quanto tempo você demorou para traduzir The Sot-Weed Factor?

P. Cinco anos.

R. Imagino que seja o mínimo necessário com um livro assim... Você se importa se eu fizer outra pergunta? Não tem nada a ver com o que estamos falando.

P. Claro.

R. Você conhece o Tom Lux?

P. Eu o conheço bem. Traduzi alguns de seus poemas.

R. Quando se encontrar com ele de novo, mande abraços de minha parte e pergunte se ele continua mascando os estimulantes dentais. Começou a usá-los quando parou de fumar. A pergunta o fará rir.

P. Não se preocupe, farei isto.

R. O Tom é um cara legal.

P. E bom poeta.

R. Sem dúvida.

P. Temos que terminar. Tenho material de sobra. Recebi um pedido para escrever uma resenha de Girl With Curious Hair, mas esse livro não me interessa tanto quanto os outros, então escreverei sobre seu trabalho em geral.

R. Parece muito bom e, lembre-se, suas perguntas são interessantes o suficiente para passarmos alguns dias falando sobre todas suas questões em uma conversa real, não para uma entrevista encomendada, uma conversa na qual você falaria tanto quanto eu.

P. Agradeço muito por suas palavras. Talvez algum dia.

R. Posso te dar... Por que você não anota meu endereço?

P. OK.

R. É a melhor maneira de entrar em contato comigo.

P. Muito bem.

R. Moro na Rural Route 2. Se quiser, basta colocar R 2. Todo mundo sabe que é uma estrada rural. Moro no campo. Esse tipo de endereço é muito normal no Centro-Oeste. É a caixa de correio 361. Bloomington, Illinois. O código postal é 61704.

P. Muito obrigado. Acho que tenho material suficiente para fazer algo que ajude os leitores espanhóis a se aproximarem de sua escrita.

R. Ou pelo menos à escrita do tradutor [risos].

P. Exatamente.

R. Está bem. Obrigado, e não se esqueça de mandar um abraço ao Mr. Lux.

P. Não esquecerei.

R. OK.

P. Se cuida.

R. Você também.

Esta entrevista com David Foster Wallace está incluída no livro Walt Whitman Ya No Vive Aquí. Ensayos Sobre Literatura Norteamericana, de Eduardo Lago, que será lançado na semana que vem pela editora Sexto Piso.

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