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Corote e Molotov, o time de várzea que joga pela resistência da população de rua

Equipe formada dentro de ocupações da zona leste de São Paulo usa o futebol para quebrar preconceitos e superar dificuldades da vida embaixo dos viadutos

Diogo Magri
"Paz entre nós, guerra ao sistema", diz a faixa da equipe do Corote.
"Paz entre nós, guerra ao sistema", diz a faixa da equipe do Corote.Reprodução/Facebook
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John Lennon completa um cruzamento rasteiro pela ponta esquerda e abre o placar em uma manhã fria em pleno sábado. Não há plateia. Num campo de terra numa viela em São Paulo, a pouco mais de um quilômetro do moderno Allianz Parque, do Palmeiras, John faz muita festa com seus companheiros após abrir o placar contra o 7 de Setembro pelo Corote e Molotov, o único time de futebol declaradamente formado por moradores de rua da cidade. "Comemorar um gol é um símbolo de superação para eles. A galera vive sofrendo ameaças", explica Paulo Escobar, fundador da equipe. "Na verdade, estar em campo já é um símbolo de superação".

O nome do time, fundado em 2016, faz referência à bebida alcoólica Corote, uma cachaça barata, e à bomba incendiária geralmente usada em protestos sociais. "O Corote ajuda o morador de rua a se aquecer e enfrentar o preconceito da sociedade. O molotov simboliza a resistência", diz Escobar. As cores são preto e vermelho — o vermelho remete ao fogo e o preto traz à tona a questão da luta e da tendência anarquista que a comunidade, que existe desde 2012 embaixo do Viaduto Alcântara Machado, na zona leste de São Paulo, diz defender.

A "ocupa", como a comunidade é chamada, surgiu depois que a população de rua, então dispersa, se uniu debaixo do viaduto para resistir contra a repressão do Governo e da prefeitura. Aproveitando a estrutura da Alcântara Machado, onde funcionou por três anos uma tenda de assistência social criada pelo ex-prefeito Gilberto Kassab, os moradores têm acesso a banheiros, chuveiros e cozinha coletiva. Alguns dormem em barracas e colchões dentro da tenda, enquanto outros montaram malocas do lado de fora. "São mais ou menos 350 pessoas que circulam por ali, entre moradores fixos e pessoas que só passam para dormir, tomar banho ou lavar a roupa", comenta Escobar, que desde 2000 ajuda a população em situação de rua.

O escudo do time.
O escudo do time.Reprodução

Formado em ciências sociais, Escobar garante o funcionamento do sistema independentemente de governo: "Eles adotam uma anarquia que funciona melhor. São organizações autônomas que não precisaram nem da explicação teórica de nenhum acadêmico". Além da Alcântara, a Comunidade do Cimento, a 1 km de distância, e a de São Martinho, que fica no Viaduto Guadalajara, também na zona leste, funcionam da mesma forma. As três sofrem com constantes ameaças da polícia e da Guarda Civil Municipal, seja em administrações do DEM, PT ou PSDB, os três últimos partidos que ocuparam a Prefeitura da capital paulistana. "A última grande operação de fechamento da ocupação foi durante a gestão do [Fernando] Haddad. Direita e esquerda tentaram nos retirar dali".

A exclusão também foi o que motivou a fundação do Corote e Molotov, em 2016. Escobar explica que, quando jogava em outras equipes de várzea, tentava trazer moradores de rua para os jogos, mas o preconceito dos times não deixava. Daí surgiu a ideia de montar um time de futebol para moradores de rua: "Queremos mostrar que existe futebol debaixo do viaduto", diz. "Não faz sentido excluir na várzea, que já é um espaço alternativo". Além da população de rua, a equipe também conta com pessoas que ajudam na ocupação e na rotina de seus moradores.

Com pouco mais de dois anos de existência, o Corote já soma algumas glórias, como uma vitória em cima do time que negou a participação de moradores de rua. "Representamos as ocupações. Ganhar deles foi um orgulho para mim", resume Johnny Jamaica, ex-morador da "ocupa" e hoje treinador do time rubro-negro. Mas vencer a equipe excludente não é a forma mais importante de superar as dificuldades diárias que os membros do Corote enfrentam. "O time precisa resistir para pagar o aluguel do seu campo [o popular Bicudão, no bairro da Lapa], para pagar a condução até o jogo, para ter uma chuteira. É um parto para jogar todo fim de semana", afirma Escobar, que faz questão de reforçar como o time evita jogar campeonatos que envolvem muito dinheiro, situação que é comum na várzea hoje em dia. Segundo o fundador, existem torneios amadores que cobram até mil reais como taxa de inscrição e premiam em até 20 mil reais o campeão. "Quem mora na rua queria ser jogador de futebol também, e a gente quer jogar bola só pelo prazer. Estar aqui é realizar o sonho dessa galera".

Johnny Jamaica, antes de ser o treinador do Corote, já jogou pelo time, já fez shows de reggae pelo Brasil, esteve em situação de rua e na cadeia. "Já morei dois meses na rua enquanto fazia faculdade. Tem caras que moram na rua e são empregados em firmas. As pessoas ligam muito o progresso às coisas materiais", comenta. Jamaica foi educador no começo da ocupação na Alcântara Machado e hoje trabalha como cinegrafista de um portal de futebol. Quando estava preso, Johnny conta, emocionado, que recebia cartas do time enquanto jogava pelas seleções do detentos. "Meu maior sonho era voltar e jogar pelo meu povo. Todo gol que eu fiz pelo Corote foi diferente. A história para mim foi conseguir jogar". Com a cartilagem dos dois joelhos desgastada após lesões causadas pelo esporte, ele precisou migrar do campo para a área técnica, sem deixar de acompanhar o time da comunidade.

Na partida daquele sábado de manhã, não deu para o Corote. O 7 de Setembro virou o jogo ainda no primeiro tempo. Na etapa final, a equipe de Escobar e Jamaica foi para cima em busca do empate, mas sofreu nos contra-ataques: 4 a 1 foi o placar final. "Estávamos sem zagueiros. Muita gente não consegue vir da zona leste, ainda mais nesse horário", justificou o treinador ao fim da partida. Mas, em meio aos sorrisos da conversa no pós-jogo de quem conseguiu alguns minutos de prazer dentro de uma semana sofrida, percebe que o placar nem é tão importante assim. "Desde o início da ocupação, a galera se reinventa. Sempre tem alguma coisa nova para conquistarmos. Futebol é só mais uma".

Projeto Kombi Coroteira

"Muita gente não consegue vir aos jogos por causa da condução. Também, quando precisamos de atendimento, o SAMU não vai até o viaduto. A galera concluiu que uma saída seria arranjar um veículo para a comunidade", conta Paulo Escobar. Da necessidade surgiu um projeto de financiamento coletivo para comprar a Kombi Coroteira, um automóvel que serviria como transporte à ocupação do Alcântara Machado, tanto em urgências quanto para os jogos da equipe. Através do site Benfeitoria, o interessado pode doar de 10 a 1.000 reais, sendo recompensado com agradecimentos, adesivos e até camisetas autografadas por jogadores profissionais. Segundo o site de crowdfunding, a 25 dias do fim da campanha, foram arrecadados 9.570 reais, 46% da meta de 21.000 reais. O valor final tem como objetivo bancar, além da Kombi, a documentação do veículo, carta de motorista, gasolina, manutenção, prêmios e a taxa cobrada pelo site.

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