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‘Seja homem e cubra suas mulheres’: a cruzada contra a liberdade feminina no Marrocos

Campanha sobre vestuário das marroquinas gera mobilização de milhares de pessoas nas redes sociais

Francisco Peregil
A feminista marroquina Betty Lachgar, na sexta-feira, 27, na praia Oudayas, em Rabat, ao lado de Hanan (sentada), que veste um ‘niqab’
A feminista marroquina Betty Lachgar, na sexta-feira, 27, na praia Oudayas, em Rabat, ao lado de Hanan (sentada), que veste um ‘niqab’FRANCISCO PEREGIL
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É sexta-feira ao meio-dia na praia Oudayas, em Rabat. Como em muitas outras enseadas do Marrocos, os homens descansam em trajes de banho, com o torso nu, enquanto quase todas as mulheres estão com o corpo coberto, seja com um vestido longo, um burkini ou uma saia... Ninguém usa biquíni, com exceção de algumas meninas. Há apenas uma mulher usando maiô de uma peça. Seu nome é Safa e mora em Londres há 20 anos, embora tenha nascido e crescido em Rabat. E apenas uma usa um niqab, isto é, está com todo o corpo coberto de preto, exceto as mãos e os olhos. Seu nome é Hanan e tem 33 anos. Hanan é absolutamente a favor da campanha “Seja homem”, que inundou as redes sociais no Marrocos desde o início de julho.

A hashtag (palavra-chave) em árabe clássico Kun Rajulan ou no dialeto marroquino Kun Rajel (Seja homem) é acompanhada de um conselho: “Cubra suas mulheres”. Há três anos, uma campanha com a mesma palavra-chave foi realizada na Argélia. Agora, no Marrocos, dezenas de ativistas, internautas e intelectuais expressaram sua indignação contra vídeos, tuítes e mensagens com esse lema machista que corre pelas redes sociais. Um colunista aconselhou “ignorar os provocadores”, como se fossem o “idiota da aldeia”. Um marroquino que vive na China publicou um vídeo que se tornou viral: “Seja homem e ajude aquela mulher que é agredida sob sua indiferença. Seja homem e trabalhe ou estude, porque as mulheres que você ataca são ativas”. Outros escreveram: “Seja homem e controle seus impulsos”. E como essas mensagens, muitas outras.

Betty Lachgar, porta-voz do Movimento Alternativo pelas Liberdades Individuais (Mali), promoveu no Facebook a contracampanha “Seja uma mulher livre”. Lachgar acredita que ignorar a cruzada machista é ser cúmplice dela. Seu objetivo não é as mulheres irem à praia de maiô, mas que façam o que quiserem. “E se não quiserem ir à praia... Dá no mesmo. O importante é que as mulheres ajam com liberdade e não sob a dominação do patriarcado. Não se trata da roupa, mas do corpo. Queremos que os homens parem de controlar nossos corpos. Esses mesmos que não respeitam nossos corpos são aqueles que, quando uma mulher é estuprada, dizem “ela merecia, por se vestir desse jeito”. São os mesmos que me assediam e me insultam”, afirma.

Lachgar nasceu em Rabat, ao lado da praia Oudayas, há 43 anos. E está convencida de que a situação das mulheres nos espaços públicos em Marrocos piorou nas últimas décadas. Ela lembra que em sua infância havia mulheres que frequentavam essa praia usando maiô sem nenhum problema. Há quem argumente que na verdade era uma elite, uma minoria as que usavam trajes de banho. “Sim, era uma minoria, mas não havia assédio como agora”, alega.

Uma das mensagens da campanha ‘Seja homem, cubra sua mulher’, nas redes sociais
Uma das mensagens da campanha ‘Seja homem, cubra sua mulher’, nas redes sociais

Hanan, a mulher do niqab, veio à praia com as duas filhas pequenas. Ela é casada e seu marido “permite” que ela tome o táxi sozinha. Tem uma prima que não pode dar um passo na rua se não estiver acompanhada pelo marido. Em relação à campanha, concorda plenamente. “Está escrito no Corão. Antes que algum homem dissesse, foi Alá quem disse que as mulheres devem andar bem cobertas e que assim serão respeitadas”.

A apenas cem metros dela está Safa, de 40 anos, a única mulher de maiô, acompanhada também por uma filha pequena. “Sou muçulmana e sou livre. Quem pensa que é homem porque se deita com uma mulher não é homem nem é nada. Mostre-me 10 homens e direi que sou mais forte que eles. Sou divorciada, deixei meu país e minha cultura há 20 anos, moro em Londres e me levanto para trabalhar todos os dias às seis da manhã. Ninguém tem de me dizer como tenho de me vestir”.

Na praia duas irmãs estão sentadas à sombra, ambas sem trajes de banho. Hanan, de 30 anos, usa um véu. E Leila, de 36, tem o cabelo descoberto. Curiosamente, a do véu é quem se declara contra a campanha “Seja um homem” porque acha que as mulheres devem ser livres. A irmã é a favor.

Fátima tem 24 anos, usa burkini e um macacão jeans por cima. Acaba de sair da água com o amigo Husin. O amigo diz que não é a favor e nem contra a campanha, que é um assunto particular e cada casal deve chegar a um acordo. Fátima é contra, ela se diz livre, mas reconhece que não se atreve a ir à praia sozinha porque se sente muito assediada.

Nos últimos meses, as redes sociais foram de grande utilidade para denunciar o assédio e as agressões contra as mulheres e para deter os agressores. Em um desses vídeos, um homem é visto atacando uma menor em plena rua à luz do dia enquanto ela grita: “Você não tem coração, não tem irmã, gostaria que te fizessem isso?”. A indignação nas redes provocou a prisão dos agressores em menos de 48 horas. Mas a violência contra as mulheres continua muito palpável no espaço público. Uma sondagem da ONU Mulheres realizada em 2016 na região de Rabat-Salé-Kenitra e divulgada em fevereiro revelou que 38% dos homens acreditam que as mulheres merecem ser agredidas às vezes. E 62,8% das mulheres relataram ter sofrido algum ato de violência.

Betty Lachgar acredita que sua contracampanha não mudará a sociedade marroquina, mas se recusa a baixar os braços. “A expressão em árabe dialetal marroquino para “seja homem” é usada a cada momento da vida cotidiana”, explica. “Inclusive para as mulheres, quando se quer incentivá-las e que tenham força, se diz ‘kun rajel’, que é equivalente em português a ‘tenha colhões’. Sabemos que isso tampouco mudará em dez anos. Mas é preciso fazer alguma coisa. É preciso se mexer.”

Uma enorme desigualdade

A situação das mulheres no Marrocos melhorou consideravelmente em 2004, quando o rei Mohamed VI promoveu um novo código de família, conhecido como La Mudawana. Com essa lei, a idade do casamento subiu de 15 para 18 anos. Até então, o marido era o único que tinha o direito de repudiar e se divorciar. E os homens ficavam com os bens do casal. Com a nova lei, a divisão é obrigatória.

Mas ainda há um longo caminho a percorrer em matéria de igualdade de direitos. Ainda continuam acontecendo cerca de 45.000 casamentos entre adultos e mulheres menores de idade. As relações sexuais fora do casamento são puníveis com um ano de prisão pelo Código Penal. Para as relações entre pessoas do mesmo sexo estão previstos três anos de prisão, e para adúlteros e adúlteras denunciados por seus cônjuges, dois anos de prisão.

As mães solteiras são frequentemente marginalizadas por suas famílias e pela sociedade como se fossem prostitutas. Seus filhos são chamados de “wlad ihram”, filhos do pecado, em árabe dialetal.

E em relação ao direito de herdar, no Marrocos, como em quase todos os países muçulmanos, rege a lei do Corão, que obriga as mulheres a herdarem a metade do dinheiro e dos bens herdados pelos homens.

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