Quando a ayahuasca rompe os limites da fotografia
O fotógrafo Rafael Hupsel mergulhou no mundo dos rituais desta planta e desenvolveu o conceito de antropologia visual a partir dos desenhos feitos por quem bebe o chá medicinal
Em sua tese de mestrado O Cipó, a folha e o apuro - visões e Imagens de uma etnografia da ayahuasca defendida recentemente no Departamento de Antropologia da USP, o fotógrafo Rafael Hupsel, fotojornalista há 15 anos, propõe uma interessante discussão sobre as relações existentes entre o mundo espiritual, fotografia documental e objetividade. Desde 2004, o autor integra o grupo Irmandade Natureza Divina, que promove a beberagem da ayahuasca, cujo preparo ocorre da mescla do cipó Banisteropsis Caapi e das folhas do arbusto Psychotria Viridis, em rituais coletivos no interior de São Paulo.
Milenarmente presente e consumida pelos indígenas da América do Sul como o grupo barasana da etnia tukano no Brasil ou no Baixo Urubamba no Peru, a ayahuasca conecta os homens a conhecimentos ancestrais transmitidos pelos espíritos da natureza por meio das visões advindas da beberagem. Hupsel percebeu que os integrantes da irmandade tinham visões semelhantes e os convidou a desenhá-las. O resultado dos rabiscos, somado às próprias visões que o fotógrafo teve, se transformaram em corpo de trabalho fotográfico que visa desconstruir a objetividade documental e lançar uma nova perspectiva no campo experimental na tentativa de aproximar imagem e visões espirituais. “A objetividade do fotojornalismo é uma crença que criamos a partir da tecnologia da fotografia em que ela faz uma cópia fiel ao que a lente capta. Isso é próprio da nossa cultura. Na busca por produzir imagens que traduzissem esses estados de transcendência entendi que a fotografia documental limitaria meu trabalho. Precisava ir para outros patamares”, diz ele.
Um pesquisador de fora de seu grupo/objeto de pesquisa passa a conviver no interior da comunidade que seja seu foco para aprofundar seus estudos. É comum, com o passar do tempo, se tornar um membro ativo. Mas Hupsel percorreu o caminho inverso. Foi da vivência íntima no seio do coletivo para o meio acadêmico na universidade. Foi o que o levou a abraçar o mestrado em antropologia. “Um pesquisador precisa de um distanciamento. No meu caso, esse distanciamento aconteceu por meio da fotografia”, conta Hupsel. “Foi com ela que consegui criar uma etnografia ao mostrar para o grupo (Irmandade) as imagens que eu fazia a partir dos desenhos deles”, completa.
Os integrantes da Irmandade, ao verem as imagens ampliadas em preto e branco em cima de uma mesa, apontavam para a interferência do mundo espiritual na própria fotografia. “Foi fascinante porque me tornei um aparelho para os espíritos interagirem a partir da fotografia,” diz o autor. O diálogo proposto por ele aproxima a linguagem documental, ao retratar o preparo da bebida feito no interior da floresta amazônica, e a perspectiva ficcional da realidade que flerta com nosso imaginário.
Se por um lado o fotojornalismo é superficial e carente de aprofundamento, por outro, ele se apropriou de linguagens estéticas sofisticadas quando trabalhado como uma ferramenta de antropologia visual. Ele se aprofunda no simbolismo cultural, mas a fotografia acaba sendo uma ferramenta de registros pobres de linguagem. Hupsel, porém, acredita na junção complementar das duas áreas: "Mesmo em fotógrafos que se aprofundam nos temas trabalhados há uma carência na discussão sobre as culturas. Há uma falta de linguagem fotográfica adequada na documentação da antropologia visual", reflete. Ora, a fotografia é múltipla e dotada de relações dicotômicas e antagônicas: expressão e documentação, objetividade e subjetividade, aproximação e distanciamento. Nesse sentido podemos esperar que o casamento entre fotografia documental e antropologia visual contribua para o aperfeiçoamento estético e reflexivo de ambos e possamos assim obter resultados mais profundos nas pesquisas de campo.
No caso de Hupsel, a experiência com ayuasca foi além de um exercício profissional. “Hoje consigo me comunicar com os seres espirituais contidos nas plantas e nas águas e permito que me orientem. Estava doente espiritualmente e a ayhuasca ajudou na minha cura.”
Victor Moriyama é fotógrafo, colabora com os mais importantes jornais do mundo, e escreve quinzenalmente sobre fotografia no EL PAÍS. (www.victormoriyama.com.br)
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