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Os ‘bleus’: espelho frágil e imperfeito da França

A seleção de futebol francesa que chega à final da Copa da Rússia reflete a história colonial do país e os debates cíclicos sobre sua identidade

Deschamps com seus jogadores em São Petersburgo.
Deschamps com seus jogadores em São Petersburgo.ETIENNE LAURENT (EFE)
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É como se, uma vez a cada quatro anos, a França se olhasse no espelho e descobrisse sua verdadeira identidade. A identidade que não vê, por exemplo, quando observa suas elites políticas e econômicas. A que raramente goza de tanta presença nos meios de comunicação.

A diversidade da seleção de futebol  que chega à final da Copa da Rússia é um reflexo aumentado – a presença das minorias é maior no futebol que no resto da sociedade – da diversidade deste país com uma longa história de colonialismo e imigração. E enfatiza, por outro lado, a pequena presença desses cidadãos na classe dirigente francesa.

Os bleus foram, no imaginário republicano, a tela na qual se projetavam as obsessões sobre a identidade nacional. Quando as coisas iam bem – na França e na seleção –, o futebol representava um ideal. Quando tudo dava errado, esse esporte resumia todas as disfunções da sociedade.

“Poderíamos fazer uma história social da França estudando a equipe de futebol”, diz, num café de Paris, o escritor Abdourahman Waberi, francês nascido no Djibuti e professor na Universidade George Washington. “Nos anos cinquenta, havia jogadores com nomes poloneses: gente do norte e do leste da França, redutos operários. Depois chegaram os italianos. Nas seleções dos anos setenta e oitenta, vemos nomes italianos e espanhóis. E, a partir de meados dos anos oitenta e anos noventa, temos os filhos da África pós-colonial.”

Relacionar a seleção francesa com a imigração pode dar margem a mal-entendidos. Seus jogadores são franceses, tal como eram o polonês Kopa, o italiano Platini, o espanhol Fernández... Alguns, filhos ou netos de imigrantes. Outros, nascidos em territórios coloniais como a Antilhas, que pertencem à França desde o século XVII, ao passo que, como lembra Waberi, Nice está há pouco mais de um século e meio sob domínio francês.

Mas é verdade que essas seleções – a da França, assim como as da Bélgica e da Inglaterra, para citar apenas as semifinalistas da Copa – são a evidência de nações europeias multiétnicas. Trata-se de Estados que, no mínimo, ofereceram, cada um com modelos diferentes, vias para a integração das sucessivas ondas de imigrantes. Os Estados Unidos – para tirar a prova, basta ver a seleção desse país em qualquer esporte – também seguem esse modelo. Todos são o que agora se denominaria de “democracias liberais”, hoje questionadas pelo contramodelo dos defensores da retirada nacionalista e do modelo de democracia autoritária.

No caso francês, o espelho da seleção nunca foi perfeito, e com frequência foi um incômodo. Há 20 anos a França venceu a Copa e viveu um idílio com a seleção black-blanc-beur de Zinedine Zidane, jogo de palavras com as cores da bandeira, transformadas em preto-branco-árabe. Três anos depois, o país vivia o desagradável episódio das vaias à Marselhesa no jogo França-Argélia no Stade de France, que alguns viveram como uma afronta dos filhos da imigração argelina à pátria. E em 2002, o líder ultradireitista Jean-Marie Le Pen, que representava a França hostil à identidade black-blanc-beur, chegava ao segundo turno das eleições presidenciais (sua filha, em 2017, repetiu a façanha com mais de 10 milhões de votos).

Os vaivéns – da identificação com os bleus à incomodidade – não cessaram. Em 2005, após a explosão dos subúrbios (banlieues), o intelectual Alain Finkielkraut lamentou que a seleção francesa fosse “black-black-black, o que é motivo de chacota em toda a Europa”. As fricções não terminaram aí. A exclusão de Karim Benzema da equipe nacional, ainda em vigor, levou o jogador a sugerir a existência de um lobby racista, embora o motivo oficial da medida tenha sido o seu suposto envolvimento num esquema de chantagem sexual. A pequena proporção de descendentes de argelinos na seleção também levou alguns comentaristas, há alguns anos, a se perguntarem: “Onde estão os árabes?” Muitos jogaram com a Argélia.

Diria-se que as vitórias na Rússia e o bom clima entre os bleus afastaram qualquer polêmica desta vez. O futebol se transforma então numa forma de pedagogia: ensinar aos cidadãos que se chamar François é tão francês quanto Zinedine.

“A seleção, a de 1998 e a de hoje, é a França, porque a França é uma condensação de todas as ondas [migratórias] sucessivas que chegaram no século XX. Por isso, o time atual é um resumo da história da França e da imigração”, diz, pelo telefone, William Gasparini, sociólogo e professor da Universidade de Estrasburgo. E completa: “A diversidade que vemos no futebol de alto nível não se reproduz na política. Se você olhar os deputados do departamento de Seine-Saint-Denis, que tem muitos imigrantes, verá que poucos deles provêm da imigração.”

Dos 12 deputados de Seine-Saint-Denis, apenas um é imigrante. E esse é o distrito por excelência da banlieue, o lugar de onde vêm vários jogadores dos bleus, incluindo o novo herói bleu, o veloz Kylian Mbappé. Ainda há muito chão pela frente.

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