A hora da metamorfose africana
Em plena ebulição social, o continente avança para a integração em busca de novos modelos de desenvolvimento, mas sem perder a identidade
“Sou a hora vermelha, a hora vermelha desatada.” A escolha desta frase como lema da Bienal de Arte Contemporânea que acontece neste mês em Dacar não tem nada de casual. Extraída da peça teatral Et les Chiens se Taisaient (1958) do ideólogo da negritude, o poeta martiniquenho Aimé Cesaire, faz referência à emancipação, à liberdade conquistada, à metamorfose. A África, assim entendeu o curador do Dak'art 2018, Simon Njami, passar por este momento de mudança, de nascimento de algo novo. Na arte, mas também na filosofia, na sociedade, na gestão pública, na economia, na maneira como os africanos se relacionam entre si e com o mundo.
Nesta sexta-feira se comemora o 55º. aniversário da criação da Organização para a Unidade Africana (OUA), o organismo continental que foi o embrião da atual União Africana (UA). Aquele sonho de unidade – frustrado desde o princípio por disputas fronteiriças, ambições de poder de certas elites africanas e o permanente bafo no cangote das ex-potências convertidas ao neocolonialismo – parece começar a tomar corpo agora, meio século depois. Em 21 de março deste ano, 44 dos 55 países africanos aprovaram a criação de uma Zona de Livre Comércio Continental, o primeiro passo para um mercado comum de 1,2 bilhão de pessoas.
Na foto da cúpula de chefes de Estado celebrada em Kigali (Ruanda) que validou esse acordo – aliás, nenhuma mulher na imagem, sendo a representação paritária nas instâncias mais elevadas do poder outro desafio continental neste século XXI – aparece o presidente de Gana, Nana Akufo-Addo, em um discreto segundo plano que não corresponde ao papel de referência que foi burilando em pouco mais de um ano no cargo.
A adoção de medidas como a nomeação de um promotor especial contra a corrupção, uma das pragas que atravancam o desenvolvimento africano, a gratuidade da educação secundária, o projeto de construir uma fábrica para o beneficiamento de cacau (promovendo a industrialização em detrimento da exportação de matérias primas) e, sobretudo, a renúncia à ajuda do FMI projetam o novo presidente ganense como um exemplo de políticas autônomas em relação aos ditames ocidentais, enquanto sua economia cresce mais que qualquer outra no mundo (8,3% neste ano).
África está em um momento de mudança, de nascimento de algo novo
A forma como Akufo-Addo chegou ao poder, numa alternância pacífica, está se tornando norma em toda a África, como mostram os exemplos da Nigéria, Benin e, mais recentemente, Libéria, onde o ex-jogador de futebol George Weah soube ler as necessidades dos mais humildes. Os autocratas também estão em retrocesso. Seguindo a onda das revoltas no Senegal e a revolução burkinesa, o ano passado começou com a queda de Jammeh na Gâmbia e terminou com a defenestração de Mugabe no Zimbábue e a aposentadoria de Dos Santos em Angola. Embora seja verdade que países como Uganda, Camarões e Guiné Equatorial ainda sejam trincheiras de velhos dinossauros, e que no Egito e Burundi acampam tiranos recém-saídos do forno, a democracia, ao menos formalmente, avança pelo continente, e os golpes de Estado são cada vez menos tolerados.
Esse avanço político está intimamente ligado à emergência de uma classe média que precisa de paz e estabilidade e ao avanço da educação, com passo firme, apesar de alguns tropeços, em todos os países do continente. Embora os desafios sejam enormes e haja 33 milhões de crianças sem acesso à educação primária na África Subsaariana, a reunião da Aliança Mundial pela Educação realizada em fevereiro deste ano em Dacar serviu como estímulo aos Governos para incrementar os orçamentos nessa rubrica (chegando a 20% de seus PIBs). A escola, reconhecem todos os líderes africanos, é a pedra angular para combater o radicalismo que se enquistou em lugares como o norte do Mali, a Somália e o nordeste da Nigéria. Mas a educação também engendra uma população crítica e informada.
No coração de todas estas mudanças está o incremento da consciência popular e a emergência de movimentos sociais que articulam o descontentamento de amplos setores marginalizados de um crescimento econômico importante, mas não inclusivo. Se a África se encontrar em algo semelhante à “hora vermelha” de Cesaire, isso não é tanto porque seus dirigentes tenham tido uma epifania, e sim porque estão sendo pressionados de baixo para cima. Plataformas como Y’en a Marre no Senegal, Le Balai Citoyen em Burkina Faso, Trop C’Est Trop no Mali, Filimbi e Luta na República Democrática do Congo e Ça Suffit no Chade representaram, acima de tudo, um exercício de reapropiação da política e recuperação do espaço público por parte dos cidadãos.
Essa movimentação nas ruas, liderada por rappers e cantores de hip hop, se baseia, em sua parte mais dinâmica, em dois elementos exógenos: o brutal crescimento das novas tecnologias e a potente mensagem vinda da Tunísia e da egípcia praça Tahrir durante o auge da Primavera Árabe. Entretanto, suas raízes profundas são negro-africanas até a medula, da ruptura sankarista à delirante recusa a morrer do rebelde Marcial no romance La Vie et Demie, de Sony Labou Tansi, passando pelo anticolonialismo furioso de Frantz Fannon e o feminismo radical da nigeriana Funmilayo Ransome-Kuti, mãe do artista Fela Kuti.
De todos eles um pouco, mas também de sua enorme capacidade para farejar o ambiente, procede a inspiração que levou o intuitivo economista senegalês Felwine Sarr a escrever Afrotopia, um livro que virou espelho deste continente em busca, que precisa rever conceitos como os de democracia e desenvolvimento. “A África não tem que alcançar a ninguém. Já não deve percorrer os atalhos que lhe indicam, e sim caminhar com passo firme pelo caminho que escolheu”, afirma Sarr. Olhando para frente, sem esquecer a história.
No coração de todas as mudanças está o desenvolvimento de uma consciência cidadã
Daí a indignação, no final de 2017, com a revelação da existência de mercados de escravos na Líbia. Os dirigentes africanos, pressionados por suas opiniões públicas, apressaram-se em facilitar voos de repatriação humanitária aos migrantes que estavam nos centros de detenção de Trípoli. Também a inauguração, neste mês, das obras de remodelação de uma praça chamada Europa na ilha senegalesa de Gorée, autêntico símbolo desse passado difícil de digerir, gerou um grande mal-estar em boa parte da sociedade civil africana. Quando se deu o nome ao lugar, em 2003, ninguém protestou, mas agora o momento é outro. O mesmo se aplica à estátua do general francês Faidherbe que domina a praça central da cidade da Saint Louis, no norte do Senegal: foi inaugurada em 1887, mas só nos últimos anos surgiram iniciativas para retirá-la.
Velhas feridas e novos problemas. Enquanto a mudança climática se faz notar na erosão costeira da Mauritânia a Angola, e a seca se torna crônica no castigado Sahel, ameaçado novamente por uma crise alimentar neste ano, os países africanos adotam medidas. O projeto da Grande Muralha Verde se estende, ainda que com exasperante lentidão, e o continente declarou a guerra ao plástico: o Quênia acaba de se somar a cerca de outros 20 países que nos últimos anos proibiram as sacolas desse material, uma autêntica praga bíblica que alaga todos os rincões. Até agora Ruanda, conhecida como a Suíça africana pela limpeza de suas ruas, foi o país que mais teve sucesso na aplicação da lei.
O continente é tão grande e tão diverso que é preciso examiná-lo com lupa. Enquanto 300 milhões de africanos não têm acesso à água potável ou precisam percorrer vários quilômetros por dia para extrai-la, países como Gana, Marrocos e Quênia já contam com seus primeiros satélites orbitando a Terra, numa espécie de afro-corrida espacial. Se a eletrificação rural continua sendo uma necessidade urgente na Etiópia e em Burkina Faso, nas cidades de meio continente o consumo de séries made in Africa dispara. Já não é só a famosa Nollywood; muitos outros países atualmente emitem as suas próprias produções.
O escritor nigeriano Wole Soyinka, ganhador do Nobel de Literatura, dizia numa entrevista no documentário Negritude, do malinense Manthia Diawara, que, frente à arrogância de culturas fundadas nas grandes religiões, que creem deter a verdade revelada e tentam impô-la aos outros, “um dos grandes legados africanos ao mundo são suas religiões não estruturadas, em constante busca e questionamento”. Talvez desta raiz também se nutra esta “hora vermelha”, talvez daí venha este momento de indefinição e busca, em que o continente quer olhar para o futuro e desenvolver seu próprio modelo, sem trair seu passado nem “se transformar num museu”, como dizia o poeta e primeiro presidente senegalês, Léopold Sédar Senghor.
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