Estique o braço sob os lençóis, coloque a mão sobre seu ombro. Tente sentir aquele ‘vibrato’
De vez em quando, evoque como era tempos atrás, quando a fantasia da felicidade se somava à felicidade dura e robusta que você exalava
Durante as conversas, observe suas palavras como se fossem insetos carregados de doenças ocultas, insidiosas, que só merecem a aniquilação ou o desprezo. Quando discutirem, não alcance níveis de intensidade inflamada, e sim um tom retraído, cheio de ressentimento e fastio, no qual de vez em quando uma válvula de escape expulse intempestivamente frases como: “Outra vez com isso”, “Poderia ter dito naquela época” ou “Não se pode falar nada para você”. Depois, tudo deve ser apagado num silêncio abominável, um caldo de ira e de desânimo. Pense muito nos incontáveis sentidos da palavra “antes” na frase: “Antes você não me dizia essas coisas”. De vez em quando, evoque como era tempos atrás, quando a fantasia da felicidade se somava à felicidade dura e robusta que você exalava. Toda aquela euforia jorrando. Toda aquela boa sorte vigorosa. O rio dos dias em que só havia novidade e celebração. Recorde o desejo monstruoso. Recorde que se liam livros em voz alta. Recorde que se contavam, sem se cansar, repetidamente, as mesmas histórias: “Quando eu tinha dez anos”, “Quando fui acampar com meus pais”, “Quando caí daquela árvore”. Tudo isso que agora parece uma peruca atirada ao fogo da qual não restam nem cinzas. Uma noite, quando estiverem dormindo, desperte e sinta um golpe de ternura. O broto de algo que parece estar feito em partes iguais de raciocínio e sentimento, que parece genuíno, que não parece estar montado na arquitetura de uma emoção falsa, de uma veemência passageira. Um rapto. Diga-se: “Talvez”. Como que se dispondo a contemplar um milagre de ressurreição, deixe-se levar pelo impulso. Estique o braço sob os lençóis, coloque a mão sobre seu ombro. Tente sentir aquele vibrato, aquela eletrificação grosseira, aquela gula pesada. Não sinta nada.
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