“Pergunte-se o que aconteceu com a garota que você era”
Pense com alívio e com pânico, com agradecimento e terror: “Podemos continuar assim por mais vinte anos”
Olhe pela janela do carro. Veja como, à sua direita, se alinham edifícios de cimento e vidro. Sinta frio, mesmo que seja um sábado de sol. Recolha os pés no banco. Olhe para ele, que dirige. Pense: “Como ele é bonito”. Diga: “Que prédios mais feios”. Escute como ele diz: “Sim”. Diga: “Precisamos chamar o encanador para arrumar o cano”. Escute como ele diz: “Certo”, não como se não se importasse, mas como quem considera o assunto irrelevante para um dia como esse. Sente-se de repente, com pressa, como se quisesse corrigir um erro. Diga “E se fôssemos ao teatro?”. Escute como ele diz: “Sim?”. Diga: “Melhor não”. Pense: “Nós não gostamos de teatro”. Sinta uma vontade estranha: como se quisesse agradá-lo, mas fazendo coisas que você nunca faz, em uma atitude que sabe que parecerá ridícula e suspeita. Você não consegue parar. Diga: “E a uma galeria de arte?”. Escute como ele diz: “E se fôssemos ao concerto no parque, de noite?”. Pense: “Calor, mosquitos, horas fora de casa”. Responda: “Amanhã preciso trabalhar”. Arrependa-se. Pergunte-se o que aconteceu com a garota que você era: alguém capaz de ir a um concerto a qualquer hora, alguém que vivia em um apartamento no qual existia um só prato, um só garfo, um só jogo de lençóis. Pense na casa em que vivem agora onde, há uma semana, encontrou um jogo de toalhas novas compradas há cinco anos. Diga “Bom, podemos ir e voltar cedo”. Escute como ele diz, com serena sinceridade. “Não, tudo bem. Gostamos de passear. Vamos ao rio”. Olhe os dedos dos seus pés, encolhidos como garras. Pergunte-se: “O que resta de mim?”. Olhe pela janela. Sinta-se ansiosa como um pássaro que bate contra um vidro e procura uma saída que não existe. Pense – com alívio e com pânico, com agradecimento e terror – “Podemos continuar assim por mais vinte anos”.
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