O humanismo abrasante de Nelson Pereira dos Santos

O cineasta, diretor de filmes como ‘Rio, 40 Graus’ e ‘Vidas Secas’, morreu no sábado aos 89 anos

Cena do filme 'Vidas Secas', de Nelson Pereira dos Santos.
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Nelson Pereira dos Santos, precursor do Cinema Novo e figura-chave do cinema latino-americano, morreu no sábado aos 89 anos, no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro, vítima de um câncer de fígado. Com sua morte, o cinema brasileiro perde sua grande referência, a figura paternal das gerações seguintes que revolucionaram o cinema brasileiro. Outro cineasta brasileiro, Cacá Diegues, comentava: "Sempre tive medo do Nelson, um certo medo filial de quem teme o julgamento que importa, porque nunca conheci pessoa mais sábia, capaz de ensinar de uma forma que você não percebe que está aprendendo. Nelson foi quem mostrou a todos nós que era possível fazer um cinema diferente no Brasil".

Pereira dos Santos foi indicado quatro vezes para o Festival de Cannes, e outras quatro para o Berlinale. Além de ter recebido prêmios e homenagens, sua figura se agiganta no tempo por sua influência como criador e referência moral para um continente. O escritor Jorge Amado o admirava por sua férrea consciência política "à medida que se tornava mais amplo, mais aberto. Era um paulista que se tornou carioca e, depois, perdeu toda a estreiteza regional". Uma prova de sua importância é que sua morte foi anunciada pela Academia Brasileira de Letras: foi o primeiro cineasta da história do país a se tornar membro da instituição, em 2006.

Nelson Pereira dois Santos, em 2012.C. Simon (Getty Images)

Nascido em São Paulo, em outubro de 1928, sentia-se muito orgulhoso de suas origens humildes. Depois de estudar direito em sua cidade natal e entrar para a política, continuou sua formação por um ano como cineasta em Paris, onde estava exilado o escritor Jorge Amado, seu protetor, em meio à perseguição de membros do Partido Comunista brasileiro.

De volta ao Rio de Janeiro, então capital do Brasil, para terminar a faculdade, prestar serviço militar e se tornar pai, começou a fazer cinema e a trabalhar em jornalismo. Assim começou a filmar uma nova "geografia urbana". Primeiro, com Juventude (1950), um documentário de 45 minutos filmado nas ruas e favelas, algo nunca visto antes nas telas de cinema. Depois, mergulhando na direção, abre uma nova etapa no cinema brasileiro, que ecoa com Rio, 40 Graus (1955). Há uma década, recordava: "Cheguei ao Rio de Janeiro aos 24 anos, em 1952, e me choquei com as favelas verticais por conta da geografia da cidade de São Paulo, onde as favelas são horizontais e distantes da classe média: não são vistas. Então, olhei e pensei. Aqui está meu texto neorrealista, e inventei a história e fiz o filme que já marcava o aspecto da violência urbana que piora cada vez mais no país. A situação só vai melhorar quando fizermos reformas agrárias e urbanas".

Dessa forma, contribui, juntamente com Glauber Rocha, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Paulo César Saraceni para o desenvolvimento do Cinema Novo, corrente que quer mostrar a realidade do Brasil, especialmente do mundo rural e das favelas. Suas principais influências foram o neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague, e por isso dizia: "O Brasil é um país cada vez mais escravista, onde os poucos que vivem muito bem não têm o menor compromisso social e humanista: querem e lutam sempre por situações de privilégio econômico e poder".

Glauber Rocha disse em Uma Estética da Fome: "De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome". O próprio Pereira dos Santos explicava: "Com o Cinema Novo, o cinema brasileiro iniciou seu momento de descolonização. Os cineastas que surgiram conseguiram demonstrar que podiam dominar a linguagem universal do cinema e, ao mesmo tempo, ter uma grande fidelidade às suas origens culturais. É o mesmo processo sofrido em décadas anteriores com a literatura, com a pintura, com a música... Tivemos que travar verdadeiras batalhas para que o cinema encontrasse seu lugar na sociedade".

Entre os filmes de Pereira dos Santos, além de Rio, 40 Graus (1955), destacam-se Vidas Secas (1963), El Justicero (1967), Cinema de Lágrimas (1995) e Brasília 18% (2006), sua última produção, centrada na corrupção da política no Brasil. Também em 2006, tornou-se o primeiro cineasta a entrar para a Academia Brasileira de Letras, devido às suas adaptações literárias de autores como Graciliano Ramos (Vidas Secas é o exemplo, e com o filme ganhou o OCIC de Cannes ao mostrar a pobreza extrema do Nordeste brasileiro com compromisso e compaixão). Com Memórias do Cárcere venceu em 1984 o prêmio FIPRESCI, o da crítica internacional, no festival francês.

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