‘Pequeno Dicionário’ do cinema brasileiro, um panorama de ontem e hoje
O filme de Sandra Werneck, sucesso da “retomada” da produção nacional nos anos 90, ganha sequência em 2015 e inspira uma análise geral da evolução da indústria
Quando Sandra Werneck lançou Pequeno Dicionário Amoroso, em 1996, levar a vida fazendo cinema, no Brasil, não era nada fácil. A produção cinematográfica nacional, depois de passar alguns anos no zero, graças à extinção da Embrafilme e ao esgotamento de recursos estatais (e inclusive privados) durante o governo de Fernando Collor, estava apenas recomeçando, em uma fase que se convencionou chamar de “retomada”. Mesmo assim, a diretora carioca conseguiu o financiamento necessário e rodou seu longa – que teve finalmente ótima aceitação do público, pouco afim aos filmes brasileiros na época – e, de certa maneira, fez história.
De lá pra cá, muita coisa mudou. O país superou em grande parte o trauma econômico gerado por Collor, recuperou sua produção cinematográfica com a criação de uma série de estímulos estatais e Sandra Werneck trabalhou bastante, tornando-se uma das cineastas brasileiras mais ativas dos últimos 20 anos – tendo lançado obras de sucesso como Cazuza – O tempo não para, eleito o melhor filme de 2004 pela Academia Brasileira de Cinema, e Sonhos roubados, o preferido do público do Festival do Rio em 2010.
É nesse contexto que Werneck atualmente filma Pequeno Dicionário Amoroso 2, a sequência de seu sucesso dos 90, codirigida por Mauro Frias e que conta com os protagonistas de outrora – Andrea Beltrão e Daniel Dantas –, o mesmo apoio no elenco de estrelas como Tony Ramos e Gloria Pires e a fórmula quase sempre garantida junto aos espectadores da comédia romântica. Porém, mais do que isso, o filme – que deverá estrear em meados de 2015 – tem a seu favor estatísticas impressionantes, que dizem que de cerca de 10 filmes lançados em 1996, alcançamos a marca de 129 em 2015, com um market share que passou de 4,1 a 18,6% para o cinema brasileiro, segundo dados do site Filme B.
Mas será que os tempos atuais são tão melhores? Sem esconder a nostalgia que sente pelos moldes mais caseiros de produção do passado, Sandra Werneck acredita que não. “Fazer o primeiro filme foi mais fácil. Claro que o filme atual vive certas facilidades que eram impensáveis no passado, como o financiamento, especialmente sendo uma comédia romântica. O que me angustia são os preços que aumentaram muito, assim como as equipes. Hoje, é impossível trabalhar com pouca gente no set, a menos que seja um longa de ‘guerrilha’ – algo que, com certeza, ninguém faria comigo”, conta a diretora.
O enfrentamento deste passado magro porém artesanal com um presente de farturas mas de novas complicações inspira uma análise do atual panorama do cinema brasileiro nas diversas fases da cadeia cinematográfica. E, para essa empreitada, o esquema de verbetes de Pequeno Dicionário vem a calhar.
“B” de Bilheteria
Não só a produção de filmes aumentou nas últimas décadas, como o público das salas respondeu à altura. De 1,2 milhões de espectadores para produções nacionais em 1996, passamos ao marco de 28 milhões em 2013. Pequeno Dicionário Amoroso esteve em cartaz por 29 semanas em 1996, algo difícil nos dias atuais. Sandra Werneck conta que o boca a boca fez grande parte do trabalho de divulgação, que resultou em 490 mil espectadores, ótima cifra para a época. “Não tínhamos nenhum recurso de publicidade, mas também não competíamos com tantos Homem Aranha como hoje”, diz a diretora.
“D” de Desenvolvimento e Distribuição
Um filme nasce na etapa de desenvolvimento, que culmina na criação de um roteiro. Nem sempre ele recebeu a devida atenção no cinema brasileiro, muito mais associado à forte tradição televisiva do país ou à famosa frase de Glauber Rocha – “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” – do que às exigências de uma cinematografia avançada. No Brasil, atualmente, é comum escutar que os argentinos dão um baile nos brasileiros na hora de roteirizar suas histórias. José Roberto Torero, que foi coteirista do primeiro Pequeno Dicionário Amoroso, concorda: “Todo o cinema argentino está na frente do brasileiro. Mas o roteiro aqui está melhorando com o tempo”.
A questão da distribuição, à sua vez, é um dos maiores entraves atuais. O filme de Sandra Werneck foi distribuído em 1996 com 200 cópias, o que é um número alto, inclusive hoje, para um filme nacional. O francês Jean Thomas Bernardini, criador há 25 anos da distribuidora brasileira Imovision, explica que as produções nacionais pequenas disputam espaço com os chamados filmes de arte, sem importar a nacionalidade. Do outro lado da disputa, estão os blockbusters americanos e os nacionais. “O retorno do blockbuster é imediato, o distribuidor não tem necessariamente que conhecer os filmes: é fácil programá-los e o retorno financeiro é quase certo. No cinema de arte, o distribuidor tem que ser um profundo conhecedor, e escolher o filme certo, daqui ou de fora, é muito difícil”. Muitos opinam que as salas estão se esvaziando e que é preciso estudar alternativas: “A meu ver, os produtores deveriam explorar outras janelas para distribuir seus filmes, especialmente a internet”, diz o crítico Carlos Alberto Mattos.
“E” de Exibição
Caminhando junto com a distribuição, a exibição é um entrave também – ainda que em 1996 houvesse praticamente a metade do número de salas existentes hoje no país (1.365 contra 2.678, segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual).
Na visão de Marcelo França, do Grupo Estação, no Rio de Janeiro, o Pequeno Dicionário Amoroso 2 não deverá encontrar tantos empecilhos no caminho, por ser um filme de apelo ao público. “Dos anos 90 pra cá, o circuito comercial melhorou muito. Os filmes nacionais de grande porte não têm qualquer dificuldade de entrar no mercado. Mesmo aqueles que não têm altas expectativas de público chegam a contabilizar de 400 a 800.000 espectadores, o que não pode ser considerado nenhum fracasso”, opina.
Segundo França, a concentração de blockbusters em salas de todo o país é algo difícil de combater. Resta, para ele, “mudar o modelo de exibição do circuito alternativo”. “As salas vão ter de se reinventar para trazer público de volta e elevar a receita”, sugere. Já Bernardini, que além de distribuidor é dono do Reserva Cultural em São Paulo, acha que ”o Governo deveria ajudar a montar mais salas de arte, como acontece em outros lugares do mundo”.
“F” de Filme
É inegável, para os vários profissionais consultados, que filmar longas-metragens no Brasil é uma aventura muito mais possível hoje do que 20 anos atrás. Segundo o diretor do Filme B, Paulo Sérgio Almeida, “em 1996, a preocupação era recuperar a auto-estima. Hoje, temos uma préindústria”. Almeida acredita que “o cinema brasileiro melhorou muito”. “Isso se deve às políticas públicas favoráveis, aos editais e às leis de incentivo, que evoluíram muito nesse período”, explica. Para 2015, a expectativa é que 150 filmes nacionais sejam lançados – um recorde para o país, que arrecadou uma renda de quase 298 milhões de reais só com filmes brasileiros no ano passado.
‘I’ de Incentivo e Internacionalização
Estão aí as duas pontas da trajetória de um filme. Ele começa com incentivos à produção e – com sorte e se for o caso – traça uma carreira internacional depois de ser lançado em casa.
Eduardo Valente, consultor da Agência Nacional do Cinema (Ancine), opina que os incentivos constantes são a maior conquista do país para impulsionar seu próprio cinema. “A estrutura de financiamento dos filmes foi evoluindo com a experiência. É possível notar que conquistamos certa maturidade neste sentido, tanto do setor público, como do privado”, afirma. O mecenato, lógica adotada pelo Governo durante a retomada, principalmente através da Rouanet, para que se voltasse a filmar, foi bastante criticado em certos momentos, de lá para cá, mas Valente acredita que isso pode ter ficado para trás. “Os artigos foram sendo revisados e ampliados. Hoje, o próprio setor se sustenta, sem que seja necessário tirar recursos do orçamento geral”.
Apesar de ter impulsionado a indústria, o fomento estatal deixou como herança ao setor a burocracia. Para Paulo Sérgio Almeida, “há muito dinheiro para o cinema brasileiro, mas o caminho para consegui-lo é tortuoso. A burocracia faz o dinheiro ficar muito caro. Muitos produtores têm de pegar empréstimo e pagar contadores para cumprir tantos requisitos formais”.
No quesito internacionalização, é notável o estímulo da Ancine, por exemplo, à coprodução. Foram implementados pela agência acordos bilaterais com países como Argentina e Itália, e como resultado de uma parceria que nasce junto com os próprios filmes, o cinema nacional também viaja a muito mais festivais. “Nos últimos cinco anos, o Brasil fez mais coproduções que nas três décadas anteriores”, diz Eduardo Valente.
“Q” de Qualidade
A grande maioria dos profissionais atrela a evolução do nosso cinema a uma maior diversidade, inegável no cenário de hoje. Mas a qualidade das produções é outro assunto. “Julgar a qualidade do ponto de vista industrial e do autoral são coisas muito diferentes”, diz Carlos Alberto Mattos.
Sandra Werneck, mesmo aberta às comédias românticas, afirma que “as barreiras para filmes mais políticos ou experimentais hoje é maior”. Isso não acontece com as comédias nacionais, que explodiram nos últimos anos como o gênero favorito do público, contribuindo para as estatísticas positivas da nossa indústria. Para José Roberto Torero, a chamada “globochanchada” – comédia que segue o padrão comercial típico da Globo Filmes – “é uma fórmula que dá certo”. “Acho faz parte da sopa que deve ser o cinema nacional, mas se virar a ‘ditadura da comédia’, aí é ruim”, declara.
Os documentários continuam sendo a vanguarda artística da nossa produção, na opinião de Mattos. “Ainda que já tenham passado por um momento mais vivo, nos anos entre 2004 e 2009, quando foram lançados filmes como Santiago, Jogo de Cena e Serra da desordem”.
Em relação a um futuro não muito distante, Jean Thomas Bernardini está entre os mais otimistas. “Estamos no caminho certo. O Brasil será uma cinematografia forte em alguns anos”, arrisca.
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