Um país animado
O Brasil assiste ao ‘boom' de seu cinema de animação Mercado internacional acolhe este tipo de obras, com prêmios a filmes como 'O menino e o mundo'
Esqueça Carlos Saldanha, o brasileiro que lá da cúpula da produtora norte-americana Blue Sky, famoso por sua participação na série A era do gelo e pela autoria de Rio, dá certo brilho verde-amarelo ao disputado mercado internacional da animação. O cinema brasileiro de animação vive de fato um boom, mas ele nada tem a ver com talentos de exportação, e sim com mentes criativas que alicerçam seus filmes no país, a partir de esforços individuais.
É esse o contexto por trás de dois longas-metragens que conquistaram, nos últimos anos, os principais prêmios da meca mundial da animação, o Festival Internacional de Animação de Annecy: O menino e o mundo (2014), de Alê Abreu, e Uma história de amor e de fúria (2013), de Luiz Bolognesi. Ambas produções – consideradas de baixo orçamento, financiadas com o apoio de editais estatais e realizadas com equipes mínimas – desbancaram no evento francês concorrentes norte-americanos, coreanos e japoneses, pesos pesados da área, com um único argumento irrefutável: são boas demais.
Tanto é assim que, no ano passado, o filme de Bolognesi bateu na trave do gol do Oscar, ficando entre os finalistas a uma das cinco vagas finais à disputa pela melhor animação. Este ano, Alê Abreu tem tudo pra marcar o gol, já que, além de vencer em Annecy, já conseguiu distribuição nos Estados Unidos para o seu Menino – e, ainda por cima, com a GKids, uma das empresas mais importantes do ramo. Isso significa que seu filme será visto por muito mais pessoas onde a campanha para a conquista desse prêmio de tanta visibilidade para toda uma indústria deve acontecer.
Para quem tem olhos, esse sucesso é visível só agora, no entanto ele não é mais que a “ponta do iceberg”. Quem põe as coisas dessa maneira é um dos animadores mais experientes do país, Arnaldo Galvão: “Essa visibilidade assusta, porque parece que foi rápido. Mas não é assim. A animação brasileira cresceu muito nos últimos 10 anos”, explica ele, que foi fundador da Associação Brasileira de Cinema de Animação (ABCA) em 2003. Faz coro com ele o próprio Alê Abreu, para quem as conquistas recentes não eram exatamente esperadas, porém vêm de encontro a uma tendência crescente. “Tenho 43 anos e comecei a me envolver com animação aos 13. Nesses 30 anos, só vi o gráfico subir. Devagar e sempre”.
É verdade que, enquanto muitos países vivem uma crise que os força a diminuir a produção audiovisual, o Brasil só vê boas perspectivas. Galvão recorda que O Kaiser, o primeiro curta-metragem brasileiro animado, foi lançado em 1917 pelo cartunista carioca Seth (Álvaro Martins). De lá pra cá, são contabilizados 31 longas brasileiros de animação, sendo que a metade deles foi produzida na última década. Essa evolução, partindo das origens com o Kaiser, passando pela inserção definitiva da animação no audiovisual nacional (dos anos 70 a meados dos 90) e chegando à revolução dos últimos 10 anos, ele relata no documentário O cinema animado, que acaba de terminar e que em breve circulará para o público.
Está acontecendo com a animação brasileira o que passou com a bossa nova nos anos 1960
Mas como é possível que filmes baratos, que demoram para serem feitos e circulam relativamente pouco tenham ganhado fama? Luiz Bolognesi, que depois de ter conquistado Annecy em 2013 foi chamado para fazer parti do júri deste ano, explica as coisas de uma maneira fácil: "Está acontecendo com a animação brasileira o que passou com a bossa nova nos anos 1960. Naquela época, uma produção musical de qualidade teve reconhecimento primeiro lá fora, em um nicho sofisticado, e só depois conquistou espaço no Brasil. Hoje, a animação é feita também no banco do violão, mas com uma radicalidade e uma qualidade artística que tem encantado um público cult, qualificado”, diz. Porém, para ele, a coisa não pode parar aí.
Já na carona da retomada do cinema brasileiro, a produção de animação sente um impulso em 2003, quando estímulos estatais específicos, como uma convocatória do BNDES, se concretizam, ao mesmo tempo que foi apresentado um projeto de lei (o PL 1821/03), “que dispõe sobre a veiculação obrigatória nas emissoras de televisão de desenhos animados produzidos nacionalmente”. É quando surgem séries brasileiras muito bem-sucedidas, exportadas inclusive, como Amigãozão e Peixonauta. Esse foi o começo do desenvolvimento de uma política audiovisual “muito boa”, nas palavras de Bolognesi, que permite que sejam realizados filmes autorais, que não precisam fazer concessões ao mercado. Filmes que, para ele, “têm que ser baratos, justamente para não terem a obrigação de conseguir na bilheteria um retorno financeiro”.
O que ficou no meio do caminho, portanto, foi a distribuição. “Existe talento artístico, e estamos produzindo bons filmes. Mas não estamos conversando com o grande público”, opina o diretor. Para mudar isso, seria necessário regular um mercado exibidor, em que o lançamento de um blockbuster ocupa mais da metade das 2.500 salas do país, sem deixar espaço para o produto nacional – menos, ainda, para as animações. Outras preocupações para os especialistas é, além da circulação dos filmes, a formação – de público, que não responde ainda com a presença em salas, mas também de profissionais especializados. “A falta de escolas é uma das nossas deficiências. Precisamos de cursos técnicos, que formem profissionais para dar continuidade à criação de uma indústria”, aponta Arnaldo Galvão.
Os holofotes estão postos sobre o Brasil, e vive-se, segundo Alê Abreu, “um momento para um novo momento”. O respaldo internacional foi conquistado, falta agora o fomento nacional à animação em todas as áreas da cadeia cinematográfica. Nesse ritmo, os próximos 10 anos servirão para comprovar que o país se tornou, de fato, um território de animação de qualidade, ou se o atual momento é uma bolha que, a qualquer instante, pode estourar. Seria uma pena, já que um filme animado é um meio tão poderoso de dizer coisas simples e de uma forma universal. “Uma animação chega de braços abertos e é sempre muito bem recebida”, diz Alê. Nenhuma pretensão brasileira supera essa, a de conquistar. Mesmo sendo autoral e sem fazer concessões.
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