O ancião e a ‘stripper’: a história inacabada do casamento mais estrambótico do século XX
União da modelo Anna Nicole Smith com o bilionário J. Howard Marshall II mobilizou a opinião pública. História resultou num complexo processo judicial que chegou até os nossos dias
Os protagonistas do casamento mais estrambótico da década de noventa representavam, cada um ao seu modo, uma parte do sonho americano. Ela era Anna Nicole Smith (Texas, 1967 – Flórida, 2007), loira curvilínea, modelo da Playboy e mito sexual para o norte-americano médio. Ele era J. Howard Marshall II (Pensilvânia, 1905 – Texas, 1995), empresário do petróleo que acumulou uma fortuna estimada em 2016 pela Forbes em 12 bilhões de dólares (42,3 bilhões de reais, pelo câmbio atual), o que colocava a família Marshall na 21ª colocação entre as mais ricas dos Estados Unidos (acima dos Rockefeller).
Como um bilionário conheceu uma garota que tinha largado o colégio para ser garçonete em um restaurante de frango frito da sua cidadezinha? Foi no clube de strip-tease onde ela trabalhava em 1991. Chamava-se Gigi’s, e o bilionário foi parar ali certa tarde, seguindo o conselho de seu amigo e chofer Dan, que achava que o idoso estava deprimido. Ao palco do local subiu uma garota chamada Vickie (o nome artístico Anna Nicole Smith surgiria mais tarde), e ele se apaixonou imediatamente.
“O que uma moça de 23 anos viu num homem de 86?”, perguntou-lhe o apresentador Larry King. “Eu o amava muito por tudo o que fez por mim e por meu filho. Nunca tinham me amado, nunca ninguém tinha me respeitado. Era tão amável...”, respondeu Anna Nicole
Ela, então com 21 anos, era casada com um amor de juventude (outro garçom do restaurante de frango frito) e tinha um filho, Daniel. Ele, aos 86, havia enviuvado pouco antes da sua segunda esposa, Bettye, com quem passara 30 anos casado (também esteve 30 anos com a primeira mulher, Eleanor). Com Bettye teve dois filhos, Pierce e Howard III, que logo mais voltarão a aparecer com força nesta história.
Marshall tirou Anna Nicole do clube Gigi's e a encheu de presentes caros, incluindo casas – três, para sermos exatos. Em 1992, quando Anna Nicole já vivia uma vida de luxos e tinha abandonado sua pequena Lexia natal (apenas 8.000 habitantes, a terra de origem também do cantor Les Baxter), ela respondeu a um anúncio que procurava modelos para a Playboy. Mandou suas fotos e acabou posando no pôster central. Paul Marciano, executivo-chefe da Guess, viu-a e quis que substituísse Claudia Schiffer como imagem de sua marca, voltada para roupas informais.
Em 1993 foi eleita a playmate do ano pela Playboy. Chegariam também as ofertas cinematográficas: um pequeno papel no terceiro episódio de Corra que a Polícia Vem Aí, junto com o comediante Leslie Nielsen, e em Na Roda da Fortuna, a comédia dos irmãos Coen. Se a sorte existia, ela havia sorrido para Anna Nicole, na forma de dinheiro e de trabalho.
Mas não no amor, embora tenha havido algo remotamente semelhante a uma celebração romântica. Em 27 de junho de 1994, sua história mudou para sempre. Naquele dia, após anos de relutância (segundo a versão dela), Anna Nicole se casou com J. Howard Marshall II. Ela tinha 26 anos; ele já estava com 89. Ele se casou com um terno branco e em cadeira de rodas. Ela, com um ostentoso vestido de noiva de decote pronunciado, véu e um buquê de flores silvestres.
Segundo a notícia publicada pela revista People, “os recém-casados estão mantendo a discrição publicamente. Não há, por enquanto, confirmação de onde irão viver, não temos conhecimento de um acordo pré-nupcial, e tampouco informação sobre sua lua de mel”. “Sei que a pessoas acham que me casei com Howard por seu dinheiro”, declarou ela na época. “Mas não é verdade. Eu o amo”, assegurou.
“O que uma moça de 23 anos viu num homem de 86?”, quis saber o apresentador de televisão Larry King em 2002. “Eu o amava muito por tudo o que ele fez por mim e por meu filho. Nunca tinham me amado, nunca ninguém tinha feito coisas por mim, nunca ninguém tinha me respeitado. Era tão amável...”, respondeu Anna Nicole.
Apenas 14 meses depois do casamento, em 4 de agosto de 1995, J. Howard Marshall II morreu, aos 90 anos. A tensão entre Anna Nicole e a família do magnata era tamanha que foram feitos dois velórios diferentes. Anna Nicole organizou um em 7 de agosto e fez questão de alimentar a lenda: compareceu com um vestido branco que parecia de noiva e, se alguém por acaso duvidasse das suas intenções, com o mesmo véu que usara do dia do casamento. Havia apena 30 convidados, todos eles conhecidos de Anna Nicole - nenhum havia sido apresentado ao falecido em vida.
O bilionário Marshall descansava num caixão de madeira polida, coberto com rosas brancas e lírios e acompanhado com um cartaz com os dizeres “Da sua amada”. Smith tentou ler uma passagem da Bíblia, mas começou a chorar já na primeira frase. Pouco depois, ela mesma e seu filho Daniel (então com 9 anos), cantaram em dueto para os convidados o clássico The Wind Beneath My Wings, de Bette Midler.
A família Marshall organizou outro funeral, este com muitos convidados, em 14 de agosto. Anna Nicole não foi convidada.
Anna Nicole, para surpresa geral, tampouco apareceu em outros lugares mais importantes: os seis testamentos de J. Howard Marshall II. Aparentemente, o magnata petroleiro a tinha deixado de fora. E, apesar de a modelo ter acumulado uma grande quantidade de dinheiro durante sua relação com ele (uma das casas que ganhou estava avaliada em mais de 2,5 milhões de reais, e calculava-se que o montante total se aproximava dos 34 milhões), a denúncia de uma empregada doméstica a levou à bancarrota em 1996. A denúncia é tão amalucada quanto qualquer outro elemento desta história: María Antonia Cerrato, que tinha sido babá de seu filho Daniel, processou-a em 1994 por assédio sexual. Smith faltou a várias audiências, e o juiz proferiu em 1996 uma sentença favorável à babá, obrigando a playmate a lhe pagar 800.000 dólares (2,8 milhões de reais, em valores atuais).
Pouco depois, naquele mesmo ano, ela declarou falência. Anunciou que suas dívidas chegavam a nove milhões de dólares (31,7 milhões de reais). Sem dinheiro e viciada em álcool e tranquilizantes (um mal que vinha arrastando desde seus tempos como stripper no clube Gigi’s), decidiu processar a família Marshall pelo que ela considerava justo: a enorme quantia financeira que lhe correspondia como a viúva que (assegurava ela) amava profundamente o seu marido e se casou por amor, não num golpe do baú. Segundo sua versão, o filho mais velho do magnata, Pierce, tinha manipulado o seu pai para eliminá-la da herança.
E encontrou o aliado mais inesperado nessa ação: o filho caçula de J. Howard Marshall II, Howard III.
Howard III também era um deserdado da fortuna petroleira, por causa de um desencontro com seu pai por uma questão relativa aos negócios familiares, em 1980. O herdeiro de 59 anos e Anna Nicole — então com 29 — enfrentaram Pierce, outro filho do falecido, nos tribunais.
As idas e vindas judiciais duraram muitos anos. Em 2000, um juiz de Los Angeles concedeu a Anne Smith a escandalosa soma de 400 milhões de dólares (1,4 bilhão de reais) procedentes da herança de Marshall. Em 2001, um magistrado de Houston revogou essa decisão e decidiu que esse dinheiro cabia a Pierce Marshall. Em março de 2002, um juiz do Tribunal Distrital concluiu que Anne Smith merecia a metade dos ganhos de Marshall durante seu curto casamento (nada menos que 89 milhões de dólares, ou 313,8 milhões de reais, pelo câmbio atual). Entretanto, essa decisão foi revogada por uma Corte Federal de Recursos de San Francisco em 2004.
Anna Nicole não tinha conseguido nada. E poderia parecer que esta história chegou ao fim entre 2006 e 2007, quando faleceram seus principais protagonistas. Pierce, o herdeiro da fortuna Marshall, morreu aos 67 anos, por complicações decorrentes de uma infecção. Anna Nicole, convertida no século XXI em uma celebridade televisiva com seu próprio reality show, faleceu em fevereiro de 2007 por uma overdose acidental de barbitúricos. Tinha 39 anos e sofria de depressão. O filho que Smith tinha tido quando adolescente, Daniel, havia morrido meses antes, aos 20 anos, também por uma overdose de analgésicos e antidepressivos. Seu óbito ocorreu no mesmo hospital onde ela estava dando à luz uma nova filha, Danielynn.
Ela, Danielynn, tornou-se a nova protagonista desta história na última década. Um bebê que valia potencialmente 500 milhões de dólares (1,7 bilhão de reais) que estavam nas mãos da família Marshall, já que ela herdou o processo movido por Anna Nicole Smith. Um tal Howard Stern (nada a ver com o famoso radialista) constava como pai da criança, mas um fotógrafo chamado Larry Birkhead apresentou um pedido de reconhecimento da paternidade e o ganhou, em abril de 2007, dois meses depois da morte de Smith. Isso fazia desse paparazzo o possível administrador de uma enorme fortuna... que ele ainda não tinha.
A relação de Anna Nicole Smith com a família do seu marido era tão ruim que foi preciso realizar dois velórios para ele. Ela apareceu na sua cerimônia vestida de branco, com véu de noiva, e cantou com seu filho uma canção de Bette Midler
E que nunca chegou a ter. A confusão acabaria sendo resolvida em junho de 2011, 14 anos depois de seu início, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos deixou a pequena Danielynn Birkhead sem todos os milhões que sua mãe tinha reivindicado. “Este caso, com o passar do tempo, complicou-se tanto que não há dois advogados que possam falar sobre o assunto durante cinco minutos sem chegarem a um total desacordo a respeito a todas as premissas”, disse o juiz. “Várias crianças nasceram durante o processo, vários jovens se casaram e, infelizmente, as partes originais morreram”, acrescentou o magistrado.
A história de Smith, que começa em um restaurante de frango frito e termina com um dos processos de herança mais longos e complexos dos Estados Unidos, já foi contada em livros e filmes para televisão. É curioso como ela, apesar de ser inicialmente considerada uma oportunista, chegou a despertar a simpatia da opinião pública. Estava, afinal de contas, em confronto com uma família bilionária. Era fácil ficar do lado da moça do interior, e não dos herdeiros do petróleo com uma pletora de caríssimos advogados.
Hoje, a herdeira daquele dinheiro pelo qual Anna Nicole tanto lutou, a menina Dannielynn Birkhead, de 11 anos, é uma personalidade televisiva e, assim como a sua mãe, foi modelo da marca Guess (em sua linha infantil, claro). Nunca conheceu o magnata que fez sua mãe enriquecer, e passou apenas cinco meses da sua vida com ela.
Durante uma entrevista ao programa de Wendy Williams em 2017, o pai de Danielynn afirmou que sua filha lhe pergunta “o tempo todo” pelo dinheiro que sua mãe pleiteou, mas que ele não sabe o que responder. E, em outra entrevista, deixou uma história para a lembrança. “Uma vez vimos um vídeo no YouTube em que diziam que ela era uma das 10 crianças mais ricas dos Estados Unidos. E de repente ela decidiu ir para um shopping fazer compras. E eu tive que lhe dizer: ‘Não, o que esse vídeo diz não é verdade’”. No programa de Williams, ele esclareceu: “Estamos indo bem, mas não somos ricos… embora sejamos ricos em amor”.
Se for assim, a única riqueza da qual Danielynn gozará é a única que sua mãe, Anna Nicole Smith, jamais conheceu.
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