‘Maria Madalena’: dá para pegar no sono várias vezes no caminho do Messias até Jerusalém
A ideia é curiosa, mas o desenvolvimento é insuportável
Suponho que a Semana Santa alimente a vida espiritual dos cristãos devotos, sirva de recordação eterna e tributo pontual ao nascimento da sua religião e aos fatos prodigiosos e milagrosos que a acompanharam, e que reviva, mediante rituais ancestrais, algo tão transcendental que revolucionou a história da humanidade. Entendo a solenidade desta data para infinitos paroquianos de qualquer parte e condição. Infelizmente, eu a associo na minha infância a uma sensação próxima não só do inquietante, e sim do terror puro e simples, encarnado nas procissões. A tumultuosa imagem de confrades, penitentes e nazarenos adornados com hábitos e túnicas, o rosto coberto com sinistros capuzes e a cronometrada solenidade de seus passos ao ritmo de tambores e instrumentos de sopro se transformavam para mim em um pesadelo, na encarnação desses ogros com os quais as crianças sonham. Essa gente rememora a existência de Cristo, sua tortura, sua crucificação e sua ressurreição, seus propósitos são glorificadores e piedosos, mas sua encenação me inspirava pavor. E não havia meio de me livrar de semelhante tortura. Meus velhos, pessoas crentes e praticantes, consideravam que era exultante e necessário que a criança fosse às procissões, sem prever que algum dia se tornaria agnóstica.
A Semana Santa também continha coisas muito agradáveis, como ir frequentemente ao cinema, esse refúgio imprescindível e às vezes autenticamente milagroso. A temática da programação era ritual e invariável. Com o protagonismo de Jesus Cristo, suas circunstâncias, sua passagem pela terra, os apaixonados ou furiosos com sua excepcional existência. Nunca foi o meu favorito. Estes eram os filmes de faroeste (ainda não sabíamos que se chamavam westerns), os de piratas e alguns desenhos animados. E minha memória da infância me garante que esse cinema excessivamente religioso jamais me comoveu. O argumento, embora tivesse ligeiras diferenças, era sempre o mesmo. Não me alcançava nem sua ênfase, nem sua esforçada capacidade de comoção, nem sua imediata divisão do universo entre os muito bons e os muito maus, nem seus pomposos cenários. E na época eu não sabia o que significavam essas coisas, mas sim o que eu achava divertido ou chato. O único filme desse gênero que me impressionou foi o grandioso (em todos os sentidos) Ben-Hur.
E nos tempos modernos se dedicaram à história de Cristo diretores tão pessoais e notáveis como Scorsese e Mel Gibson. Mas nem a tortuosa A Última Tentação de Cristo nem a naturalista e sádica A Paixão de Cristo me conciliaram com esse gênero.
Agora chega, em vão, Maria Madalena, cuja originalidade se centra em oferecer uma imagem insólita da personagem, já que sempre nos contaram que era uma prostituta que se redimiu ao conhecer Jesus. E ocorre que ela foi seu apóstolo. Não levava uma existência desencaminhada; era, em vez disso, uma moça asfixiada por uma família autoritária e hierárquica, e fugiu das suas raízes para seguir o revolucionário e exercer seu apostolado. A ideia é curiosa, mas o desenvolvimento é insuportável. Dá para pegar no sono várias vezes no caminho do Messias até Jerusalém. E, além disso, ele é encarnado por Joaquin Phoenix, fazendo, como sempre, o papel de si mesmo. Rooney Mara é uma atriz notável, sugestiva, sóbria, mas sua presença tampouco alivia em meio a tanto tédio.
Direção: Garth Davis
Intérpretes: Rooney Mara, Joaquin Phoenix, Chiwetel Ejiofor, Tahar Rahim, Ariane Labed
Gênero: histórico. Reino Unido, 2018
Duração: 120 minutos
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