Javier Bardem: “A maldade tem seus atrativos”
Ele é o vilão por excelência. Um dos melhores intérpretes de sua geração. Explorou monstros como Anton Chigurh — que lhe rendeu um Oscar por ‘Onde os Fracos Não Têm Vez’ — e Raoul Silva, inimigo de 007. Agora apresenta sua recriação do narcotraficante colombiano Pablo Escobar, papel que o obcecou durante uma década. A educação dos filhos, diz ele, é o maior desafio que já enfrentou.
Sorte. Preparação. Decisão. E determinação. Javier Bardem construiu sua carreira sobre quatro elementos que, somados a um rosto selvagem e uma gestualidade que pode ser tão dura quanto viril, o tornaram um dos melhores atores de sua geração. Neto, filho e sobrinho de atores, tem no currículo toda a gama de prêmios, do Oscar ao Bafta e o Goya. Nenhum ator espanhol chegou tão longe. Em Hollywood é considerado um igual, um monstro da envergadura de Sean Penn. Casado e feliz com Penélope Cruz, parece viver um momento doce em uma carreira que combina com o ativismo. Acaba de visitar a Antártica para denunciar o degelo e de estrelar a campanha de uma marca de luxo.
Chega pontualmente ao compromisso. Veste roupa esportiva e uma viseira para passar despercebido. O protagonista de Antes que Anoiteça (Las Palmas de Gran Canaria, 1969) cumprimenta com a resolução dos tímidos que crescem na distância curta. Está promovendo Amando Pablo, o filme — que estreia no Brasil em 26 de abril — que estrela e produz junto com a esposa, no qual recria o narcotraficante colombiano Pablo Escobar, mas o compromisso, às cinco da tarde no hotel Wellington, em Madri, não parece ser o melhor momento para um pai de dois filhos, de sete e quatro anos. Ele precisa de um café.
PERGUNTA. Amando Pablo é resultado de 10 anos de trabalho com seu amigo, o diretor Fernando León de Aranoa. O que vocês encontraram no livro da jornalista Virginia Vallejo para adaptá-lo ao cinema?
“Um ator deve se esquecer de si mesmo para buscar a alma de outro. Este trabalho te ajuda a não avaliar facilmente porque você está obrigado a entender”
RESPOSTA. Para além do relacionamento afetivo, havia detalhes que recriavam os anos oitenta. Virginia, com quem conversamos em algumas ocasiões, se apaixona por Pablo e entra em um buraco do qual ainda está tentando sair. Mas no livro há anedotas fantásticas de dois caras que se achavam os reis do pedaço.
P. Depois de 10 semanas de filmagem na Colômbia, sua impressão sobre o personagem mudou?
R. Passei anos me documentando, mas quando você chega ao lugar e vê os bairros pobres de Medellin em que ele cresceu entende melhor sua origem, sua ambição desmedida e esse compromisso social que logo usou convenientemente para se transformar em alguém mais poderoso. Inventou o narcotráfico com sua morte e terror, e se tornou o inimigo público número um, um cara que zombava do Estado de direito. Sua morte foi uma questão nacional e talvez seja por isso que continuamos a falar dele.
P. Quando o presidente da Colômbia esteve na Puerta del Sol, em Madri, e viu o cartaz de Narcos, ele pareceu não ter apreciado esse aspecto literário do assunto.
R. Eu o entendo. Alguns continuam levando flores ao seu túmulo e outros, a maioria, o desprezam e lembram dele com horror. Sabem que são prisioneiros de uma história que fez muito barulho e muitas mortes. Para que um cara assim aparecesse também era necessária uma sociedade corrupta e uma hierarquia nada sensível ao que estavam criando. Depois, muitos olharam para o outro lado quando o Estado declarou a guerra a ele.
“A revolta diante do abuso é extraordinária, mas estamos cruzando linhas perigosas. Uma denúncia em um veículo de comunicação não basta para que uma pessoa seja culpada”
P. Como preparou um papel com tantos contrastes?
R. Essa foi uma das razões que me fizeram querer interpretá-lo. Me ofereceram não todos, mas muitos escobares, e sempre havia algo que me assustava. Não via cor nesses caracteres, via características toscas. Me interessa o lado físico dele. Depois de muitas leituras e de assistir às entrevistas que fizeram com ele, eu o visualizei como um hipopótamo, seu animal favorito, do qual ele possuía a energia e o sangue frio para cometer atrocidades. Era um cara sossegado que colocava todo mundo para correr. E isso para um ator é um luxo.
P. Para um intérprete de método como você, o que é mais complicado: o exercício emocional de entrar ou sair dos personagens?
R. Comecei com 19 anos e completei 49. Já passei por muitos lugares, há personagens que custaram muito mais para me livrar deles. A idade, a experiência e o senso comum te ajudam a se afastar emocionalmente, mas não sei se intelectualmente. Por um tempo você continua pensando nessa figura que criou, mas não foi o caso de Escobar. Quando diziam “Corta!”, eu o deixava lá e ia embora. Nesse caso, eu também trabalhava com minha mulher e levar trabalho para casa com dois filhos é muito complicado.
R. Você conheceu sua mulher quando ela tinha 16 anos em Jamón, Jamón; depois Woody Allen os juntou em Vicky Cristina Barcelona. Já casados, trabalharam em Amando Pablo e agora terminaram de rodar em Madri com o diretor iraniano Asghar Farhadi. Existem vantagens em compartilhar o set?
P. Não se pode deixar de fora o aspecto pessoal, mas agora que somos adultos isso nos motiva a entrar em um jogo de imaginação e criatividade, no qual não importa o que acontece com você, mas o que imagina que desperta no outro, algo que te obriga a saltar a barreira pessoal para entrar na ficção e que, definitivamente, é a interpretação.
P. Você já encarnou Anton Chigurh, o frio assassino de Onde os Fracos Não Têm Vez, e Raoul Silva, o cyberterrorista loiro de Skyfall, com Daniel Craig em uma aventura de 007. Tem predileção por vilões?
R. Bom, vamos ver, sim [risos]. Mas são personagens diferentes. Escolho entre o que me oferecem procurando tonalidades diferentes em cada trabalho.
P. Ora, você está calejado de fazer o malvado.
R. Não busco desculpas, se houver material para construir um personagem, aceito. Silva e o protagonista dos irmãos Coen se aproximam da destruição por caminhos diferentes. Há algo atraente atrás dessa maldade, examinar o que aconteceu para que se tornassem monstros. Em Onde os Fracos Não Têm Vez meu personagem não mostrava nenhum sinal de humanidade, esse era o desafio, substituir um ser humano muito alterado, como aqueles que, infelizmente, encontramos muitos dias nos jornais. Aqui você deve esquecer-se de si mesmo para procurar a alma de outro, e esse trabalho te ajuda a não julgar facilmente as pessoas porque você é obrigado a entendê-las.
P. Quando recorre a Juan Carlos Corazza, seu professor de interpretação?
R. É um laboratório ao qual vou para aprender desde que comecei. Sou abençoado pela sorte de ter encontrado alguém que me ajuda pessoalmente e profissionalmente. Admiro seu talento para entender a verdade da ficção, do trabalho, como disse Liv Ullmann, de triar as máscaras e transformá-lo em algo emocional e sincero.
P. Sam Mendes, os irmãos Coen, Julian Schnabel. Carmen Maura disse que os diretores se dividem entre aqueles que falam muito e aqueles que não dizem nada. Qual você prefere?
R. [Risos] Bem visto. Tive muita sorte com as pessoas com quem trabalhei. Os Coen e Woody Allen pertencem ao grupo daqueles que não falam, e os outros... Julian diz tantas coisas interessantes que nunca me canso de ouvi-lo. Cada diretor te deixa sua marca, mas à medida que os anos passam vejo que o cinema é cada vez mais, como diz Fernando [León de Aranoa], uma disciplina artística regida pelo dinheiro. É necessário se ajustar ao orçamento e isso acontece até nas grandes produções. Vi isso em Piratas do Caribe. Encontrar inspiração e coragem nesse ambiente me parece admirável.
P. Em Hollywood você é considerado um igual, inclusive um de seus personagens apareceu rapidamente em um episódio de Os Simpsons.
R. Foram acidentes. Quando os jovens me pedem conselhos, uso a frase do [escritor Camilo José] Cela: “Eu não dou conselhos, deixo as pessoas errarem sozinhas”. É conveniente estar preparado para quando ocorre o acidente. Bigas [Luna] dizia que a carreira é metade sorte, 25% de preparação e 25% de decisão e determinação.
P. Suponho que Bigas Luna ocupa um altar em seu currículo.
R. Ele me deu meu primeiro papel em As Idades de Lulu, um personagem difícil, num prostíbulo e com a minha mãe na frente, que era a rainha do bordel. Devo minha carreira a uma mulher. Eu a amo muito.
P. Quem o coloca na Terra?
R. Meus amigos e minha família, embora eu ache que isso está impresso na educação. Cresci em uma família de atores e vi as dificuldades da minha mãe, com momentos de muito trabalho e de muito desemprego. Lembro-me da vida dela, sempre esperando um telefonema, e as consequências que isso tinha na economia doméstica. Há uma questão relacionada com essa profissão que está marcada a ferro e que tem a ver com saber tomar distância. Se você não se imagina fazendo outra coisa, você deve abraçar o que ela trouxer, tanto o sucesso quanto o fracasso. Você tem que saber como lidar com tudo.
P. Também com a fama?
R. Quando fiz Jamón, Jamón me lembro da explosão de popularidade, de andar na rua e as pessoas me reconhecerem. Foi estranho e desconfortável para mim. Esse tipo de reconhecimento não combina comigo.
P. Mas agora você é reconhecido em todos os lugares.
R. Foi difícil assimilar isso, mas assumi como parte da minha vida, embora eu tenha chegado a não admitir isso e a dizer que não era eu. Nunca tive problemas com os fãs, mas com o abuso midiático e com as pessoas que vivem disso e vêm para cima de você para conseguir uma exclusiva. Não me lembro de uma experiência desagradável na rua, nem na Espanha nem fora. Existem pessoas carinhosas e divertidas que também vêm me dizer que não gostam do que faço.
P. Ao que renunciou pela fama?
R. À capacidade de ser invisível, de olhar sem ser visto, mas não sou prisioneiro disso, procuro meus modos de observar, porque para mim isso faz parte do meu trabalho e da inspiração que provoca. Ando muito de metrô e em cinco de cada dez vezes vejo telefones que me apontam para tirar uma foto. Procuro escolher as linhas e as horas, mas sempre noto o olhar de um cara do outro lado do vagão.
P. Você não foi um bom aluno. Tampouco se adaptou à disciplina. Gostava mais de brigar do que de matemática. A vida o fez ficar mais calmo?
R. Sim, mas não gostava de brigar. Na verdade, era bastante medroso, embora tenha feito boxe, artes marciais e fosse forte. Colocava a agressividade no campo de rugby e ainda gosto muito do aspecto físico do assunto, não sou intelectual, embora seja muito cerebral, mais do que eu gostaria. Sempre fui muito instintivo, tanto que às vezes penso tarde demais: “Mas como pude fazer ou dizer isso?”. Embora isso também tenha me ajudado como ator. Você tem de ter fome no sentido artístico, que não te deem tudo na boca. Saber que você tem de aprender, que você não sabe tudo, que as coisas custam muito, que você pode chegar lá.
P. Parece um desses casos típicos do sonho americano.
R. Sou um pouco exemplo disso, de um acidente do acaso. Tive a sorte de sofrer, mas fui chamado por Bigas e Julian, que me viu saindo de uma festa e me perguntou se era ator. Eu tinha visto Carne Trêmula, mas eu estava lá naquele momento. A vida me trouxe tantas coisas que não há um dia em que eu não agradeça. Hoje tenho muitos amigos que são pais e conversamos muito sobre como mostrar todo o nosso afeto aos filhos sem exagerar para não os limitar.
P. Nesse campo não existe preparador, mas a referência da sua mãe.
R. A coisa mais difícil que encontrei é a educação dos filhos. Às vezes, aquilo que aprendemos não funciona, entendo o quão difícil é para as pessoas que vivem num ritmo vertiginoso para ouvir os filhos, especialmente se são pequenos. A educação começa aí e exige uma entrega enorme. Quando você chega em casa, eles querem o pai, não o Pablo Escobar. Tem uma canção do U2 de que gosto muito: “Você já tem experiência suficiente ou viveu o suficiente para saber que são as crianças que ensinam”.
P. Os Bardem na Espanha são, mais do que uma saga, uma marca. Você se sente amado?
R. No nível pessoal, muito. Quando ando na rua com minha mãe, vejo as pessoas que se aproximam dela para dar beijos e carinho. A AISGE [sociedade de gestão de direitos de artistas e intérpretes] fez uma homenagem a ela que reuniu 1.500 pessoas e também lhe deram o prêmio [Cinema, Ajuda e Solidariedade] da Academia de Cinema. Evidentemente, existem pessoas com ideias contrárias às nossas, mas todos são bem-vindos. O insulto e a agressão só desqualificam, embora alguma vez nós também pudemos ser agressivos.
P. Não se pode ser rico e de esquerda?
R. Bem, rico, trata-se de viver do seu trabalho e viver bem. É um dinheiro que fiz com base no trabalho, não roubei ninguém e sou uma pessoa que não cometeu muitos excessos. Sou poupador e ainda tenho dinheiro de quando fiz filmes sete anos atrás. Não desperdiço, guardo e mantenho. Diante dessa frase tão generalizada, pergunto se para falar de justiça social você precisa viver debaixo de uma ponte. É curioso que muita gente diga que “se você tem isso, não pode falar sobre o outro” porque nos empobrece e é uma forma de desprezar o outro.
P. Mas aquele que expressa uma opinião deve estar preparado para ouvir quem pensa de forma diferente e a sofrer a justiça do Twitter.
R. Claro. Mas não faço parte dessa justiça das redes. Minha geração experimentou a explosão da mídia em primeira pessoa e é muito duro. Você diz uma coisa e 15 minutos depois isso é ouvido na outra parte do mundo, para o bem e para o mal, mas é muito agressivo.
P. Desde que explodiu o caso Weinstein, parece que estamos imersos em uma revolução. Ninguém consegue deter o #MeToo, mas são válidas as listas negras?
R. Meus pais se divorciaram quando eu tinha dois anos, sempre morei com minha mãe, uma mulher com muita força, e minha educação é muito feminina; acho que entendo como funciona uma sociedade machista. Dito isso, é bom falar com cuidado. Por um lado, a revolta é extraordinária diante de qualquer tipo de abuso, especialmente em relação ao sexo e ao desequilíbrio de gênero, seja ele salarial ou moral, mas, cuidado, estamos cruzando linhas perigosas, como se tudo o que é dito e publicado em um veículo de comunicação baste para que essa pessoa seja culpada, com a ruína pessoal e profissional que isso implica e sem direito à defesa e a um julgamento justo.
P. A estrela que foi para o lixo hoje é Mario Testino.
R. Não conheço o caso dele. Mas aí fora, pode haver gente que te odeia e que pode começar a dizer barbaridades para se vingar. Convém lembrar que a presunção de inocência é um direito. Evidentemente, não estou falando sobre o caso Weinstein, em que há tantos testemunhos conhecidos por tanta gente, mas todos os dias surgem novos nomes e tenho certeza de que muitos ou quase todos são verdade, mas deve haver um processo legal. Devemos continuar denunciado, mas com cuidado. Isso assusta um pouco, pode chegar um momento em que qualquer um pode ser a vítima.
P. Você trabalhou com Woody Allen, que algumas feministas agora chamam de monstro. A arte deve provocar?
R. A arte deve ser livre, não gosto que se censure uma obra de arte porque tenha uma adolescente em uma posição provocante. Nessa base, Lolita nunca teria sido publicado.
Ultrapassamos o horário combinado e o assessor de imprensa avisa que a conversa precisa terminar. No caminho para o estacionamento não se percebem os olhares curiosos dos hóspedes do hotel. Antes de nos despedir, entrego-lhe o número que o El País Semanal dedicou a Maloma, uma jovem que vive contra sua vontade nos acampamentos saarauís de Tinduf. Bardem, que falou na ONU sobre o problema desse povo, promete lê-lo.
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