“Quando assisti ao novo ‘Piratas’ outro dia, pensei: ‘público familiar o caramba!”
Ator interpreta o vilão, Salazar, no filme que estreou nesta sexta
Toca uma música harmoniosa que induz a uma irrefreável felicidade, só interrompida pela chuva, breve, mas torrencial, e pelos controles de segurança na entrada, inevitáveis num país que continua em estado de emergência. Crianças dopadas com açúcar brincam pelos corredores do hotel em estilo New England, mas localizado nos arredores de Paris, cuja clientela parece essencialmente composta por famílias heterossexuais com dois filhos. O que um cara como Javier Bardem (Las Palmas, 1969) está fazendo num lugar como a Disneylândia de Paris? O ator estava ali no domingo para promover seu último filme, Piratas do Caribe: A vingança de Salazar, que estreou no Brasil nesta sexta-feira, 26 de maio. No quinto episódio da saga, Bardem vive o aterrorizante Armando Salazar, líder de uma horda de marujos fantasmagóricos. Seu personagem é um cruzamento de criatura mitológica e presença espectral numa pintura negra de Goya que deseja se vingar do homem que o humilhou, Jack Sparrow, novamente interpretado por um Johnny Depp com ares de Buster Keaton.
Pergunta. O que o levou a aceitar essa oferta?
Resposta. Quando te oferecem algo assim, são muitas as razões para dizer sim. Uma delas é financeira. Pagam bem, o que permite filmar coisas como Escobar [seu próximo filme, com o Fernando León de Aranoa] ou o novo de Asghar Farhadi. Mas você também precisa encontrar aí um sentido e um valor artístico…
P. Como conseguiu?
Não existe pessoa sem dor. A dor é o que nos torna humanos
R. Parti da raiva do personagem. Naquela época, a armada espanhola era quase invencível. A maioria dos capitães eram homens do sul, com um sentido de orgulho muito pronunciado. Veio-me à cabeça a ideia de um touro ferido, com a banderilla cravada e a boca cheia de sangue. Com o olhar cheio de ira e a dor mental e física que esta costuma provocar. Acontece que você filma com maquiagem e sobre um fundo azul. Não sabe muito bem como vai ficar. Trabalha um pouco no escuro.
P. O resultado não foi um concerto de histrionismo e efeitos especiais. Também há uma verdade e uma dor.
R. Tinha consciência de que estava trabalhando num filme com regras definidas. Ou você respeita ou fica de fora. Esse é um filme Disney para crianças. O que quer que faça, deve ter música. Não é Onde os Fracos não Têm Vez, que era pura aridez. Mas, dentro dessas margens, você tenta dar um sentido de realidade. Quando gritam “ação!”, o que você faz tem um sentido, apesar de haver dez câmaras filmando e 12 navios de centenas de metros de comprimento a seu redor.
P. Em seu trabalho, costuma buscar essa dor?
Nada em nossa casa lembra a nossos filhos que somos atores
R. Sim, é uma das perguntas que me faço. Não existe pessoa sem dor. A dor é o que nos torna humanos. Essa gente que não se deixa afetar por nada não me parece muito confiável… [risos].
P. Também parece reinventar o clássico eurovilão do cinema de Hollywood, como já fez em 007: Operação Skyfall.
R. Não há nada que não tenha sido feito antes e melhor, mas você tenta colocar um mínimo detalhe de sua personalidade ou de seu ponto de vista. Daí surgiu a ideia de dar um sabor do sul, misturado com traços de rei destituído, à Ricardo III. Mas repito que não dá para saber como vai ficar, porque logo vem um montador de Oklahoma e começa a cortar a seu gosto.
P. Esse é seu primeiro filme para um público familiar. Por que agora?
R. Bem, quando assisti outro dia pensei “público familiar o caralho!” [risos]. O início dá um pouco de medo, até que aparece Sparrow e fica mais engraçado. Acho que tem a ver com o fato de ser pai. Em algum momento você quer que seus filhos assistam. Já estive na filmagem da quarta parte [onde aparecia Penélope Cruz] e pude ver a qualidade e a atenção ao detalhe no que faziam.
P. Será a primeira vez que seus filhos entendem em que consiste seu trabalho.
R. Sim, porque nunca viram nada. E em casa também não há nada que lembre que somos atores. Não há cartazes nem nada disso. Não há ator no mundo que não pense, no fundo, que atuar não é um trabalho sério, embora evidentemente o seja. Você se pergunta se quer isso para seus filhos. Ainda estamos nessa mentalidade. Eu arrasto isso comigo mesmo sendo filho de atriz e sobrinho de diretor. Esse é um trabalho volátil. Você se pergunta se vale a pena. Não é um emprego de escritório onde você se senta, recebe um salário e vai para casa.
P. Seus filhos veem filmes da Disney?
R. Sim, mas não os clássicos, que me parecem muito cruéis. Eu mesmo não vi os clássicos quando criança. Só me lembro de Bambi, mas pularam as partes mais duras. Meu Bambi foi censurado! [risos]. Mas as novas sim, coloco para assistirem. Parecem-me obras de engenharia extraordinárias.
P. Não teve nenhuma ressalva em trabalhar para um império fundado por um homem conservador como Disney, com valores ideológicos diferentes dos seus?
R. Tudo é criticável, mas se criticasse tudo o que se faz o mundo não existiria. Outro dia estive no parque vendo o espetáculo de fogos de artifício. Eu me dizia: “Bom, isso é Disney…”. Até que me virei e vi a cara dos pequenos. Achei impagável. O filme foi pensado para crianças, um público que nunca atingi, que sairá emocionado como só as crianças sabem emocionar-se. Acho isso importante, tanto como outras coisas. Nos filmes recentes da Disney vejo valores bonitos e observo como afetam as crianças.
P. Por exemplo?
R. Procurando Nemo. Ou Carros, a história de um carro-estrela que perde seu lugar no mundo, até que sua gente volta a lhe dar valor por quem ele é e não pelo que representa. Esse é o exemplo que me ocorre, acho que é porque contém uma referência pessoal…
Para interpretar o ódio não preciso odiar ninguém. Basta a imaginação
P. Como foi trabalhar com Johnny Depp? É a favor de prolongar a inimizade fora da tela?
R. Eu separo totalmente as duas coisas. Sou da crença, inspirada por meu professor, Juan Carlos Coraza, de que o importante é a imaginação do intérprete. A imaginação é o que nos diferencia dos contadores, sem ser melhores nem piores. Para interpretar o ódio não preciso odiar ninguém. Muito menos Johnny, que conheci em 1999, na filmagem de Antes do Anoitecer. Chegou vestido de drag queen. Sem saber que era ele, disse: “Que bunda bonita”. Me responderam: “Não, Javier, é Johnny Depp”. Não me importei, continuava sendo uma bunda bonita. Quase vinte anos depois, Johnny continua sendo um cavalheiro. É um espetáculo vê-lo trabalhar. Sei que é um cara generoso e que se preocupa com as pessoas. O resto não é da minha conta.
P. Então, o que é vivido por um ator não tem importância.
R. O ator, sua vida e seus ecos emocionais não importam. Para isso tem a terapia. Todo mundo deveria fazer terapia, mas o ator mais ainda. Assim poderia ir ao trabalho virgem e começar a imaginar.
P. Quando você recorreu à terapia?
R. Várias vezes. Algumas, por pura necessidade. A vida é muito longa e você passa por muitas coisas. Morre seu pai e você se diz: ‘Como vou lidar com isso?’. Mas a melhor terapia sempre acontece quando você está estável. É aí que o trabalho se torna frutífero. Se você vai quando está mal, é só sobrevivência.
P. Como um ator consegue o respeito de Hollywood? É preciso saber dizer não?
R. Precisa. Meryl Streep diz que uma carreira se constrói através de seus nãos e não de seus sins. Quando você é jovem, quer ter carreira. Mais velho, faz o que pode e o que lhe dão. O que acho, e já o disse outras vezes, é que existe um grande respeito em relação ao criativo. Se você vai a um casting e é o melhor ator para o papel, vão lhe dar, mesmo que ninguém te conheça. É lógico num país fundado no conceito de valor pessoal, o que pode ser criticável. Mas não é tão fácil encontrar essa atitude em outros países de uma maneira tão incisiva.
“NÃO ME IMPORTO QUE ME CHAMEM DE ESTELIONATÁRIO PORQUE NÃO SOU”
Bardem se referiu também à recente condenação do Tribunal Supremo que, no início do mês, impôs ao ator duas sanções no valor de 150.000 euros por infrações tributárias através de uma empresa de sua propriedade em 2006 e 2007. “Num país onde há casos diários de corrupção e pilhagem dos cofres públicos, agradeço que os grandes jornais deem capas me chamando de estelionatário”, ironiza. Bardem afirma que o pagamento da diferença e da multa “foi efetuado há anos” e que a própria sentença qualifica a infração como “leve”. Segundo o ator, a Fazenda utilizou “critérios interpretativos” diferentes dos de seus consultores fiscais.
“Foi uma auditoria como milhares de outras feitas todo ano com todo mundo que tem empresa. Se as pessoas lessem além do sensacionalismo da manchete, entenderiam o que realmente aconteceu. Pelo menos serve para demonstrar que pago meus impostos na Espanha. O mito do Lago Ness veio abaixo”, acrescenta Bardem. “Talvez naquele momento servisse como cortina de fumaça para encobrir outras coisas. Não sei. Mas isso não vai me impedir de continuar criticando quem, supostamente, saqueia os cofres públicos para levar o dinheiro para contas offshore. Não me importo que me chamem de estelionatário, porque não sou. Isso é insignificante se comparado com o que outros fazem”.
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