_
_
_
_

Quem roubou o cadáver de Chaplin e onde ele está agora

O artista protagonizou uma história que poderia ter sido escrita por ele mesmo, mas foi real

A família de Chaplin durante funeral privado
A família de Chaplin durante funeral privadoGetty
Mais informações
Os 15 melhores filmes da história, segundo os usuários do FilmAffinity e IMDb
Jerry Lewis e seu filme maldito sobre o Holocausto
‘Noivo Neurótico, Noiva Nervosa’, o roteiro mais divertido da história

Poderia ser uma cena de um filme de terror B, mas ocorreu há 40 anos, na madrugada de 1.º de março de 1978, no cemitério de Corsier-sur-Vevey (Suíça). Depois de horas de buscas na escuridão sob a chuva (que caía na horizontal pelas fortes rajadas de vento), os dois homens encontraram o que queriam: uma lápide branca que se destacava entre as mais de 400 anônimas com a seguinte inscrição: “Charles Chaplin 1889-1977”.

Em seguida, os dois homens passaram duas horas cavando a terra ainda fresca (Chaplin tinha sido enterrado em 27 de dezembro de 1977, dois dias depois de sua morte), carregaram o caixão em sua caminhonete e fugiram sem nem mesmo se preocupar em tapar o buraco. Os profanadores deixaram o monte de terra ao lado do buraco para que a polícia o descobrisse na manhã seguinte. Essa invasão dos ladrões de corpo acabaria se transformando primeiro em um thriller, depois em uma comédia.

Durante dez semanas, a polícia suíça e a Interpol praticamente não encontraram pistas além de telefonemas anônimos nos quais alguns brincalhões diziam estar com o caixão.

Algumas dessas ligações impostoras iam mais longe e ameaçavam as vidas dos filhos de Charles Chaplin. Uma de seus filhos (ele teve nada menos que 11), Eugene, recorda que ninguém ria naquela casa porque alguns meses antes um político italiano, Aldo Moro, tinha sido sequestrado e assassinado: “O ambiente era horrível, todo mundo estava muito nervoso. Os terroristas que mataram Moro também tinham assassinado seu motorista, de modo que nosso motorista suava como louco. Foi um acontecimento terrível, principalmente em um país como a Suíça, onde as coisas sempre são muito tranquilas”.

A viúva de Chaplin, Oona (no centro da imagem), negou-se a ceder e declarou que seu marido “teria considerado ridícula toda esta situação”
A viúva de Chaplin, Oona (no centro da imagem), negou-se a ceder e declarou que seu marido “teria considerado ridícula toda esta situação”Getty

O país mais neutro da Europa viu sua aprazível existência sacudida por um crime tão macabro que, durante essas dez semanas sem notícias, o mundo quis encontrar um sentido perverso, místico ou político ao que havia ocorrido. Porque isso das fake news não é uma invenção do século XXI.

Falou-se de que o roubo tinha sido perpetrado por antissemitas, contrários a que o corpo de Chaplin (que, segundo alguns rumores da época, era judeu) repousasse em um cemitério anglicano. Outros diziam que os autores eram nazistas enfurecidos pela paródia de Adolf Hitler que Chaplin imortalizou no filme O Grande Ditador, que se tornou quase tão famosa quanto o próprio ditador alemão. Também circulou a teoria de que uns admiradores do artista tinham exumado o cadáver para sepultá-lo na Inglaterra, seu país de origem.

Mas a realidade, por uma vez, não superou a ficção, e a resolução do crime acabou sendo muito mais vulgar, mundana e delirante do que qualquer fascinante teoria da conspiração. Os autores do roubo eram dois ladrões baratos, tão inexperientes e desesperados que primeiro pediram um resgate e depois começaram a negociar o valor.

Os ladrões soavam nervosos e disfarçavam a voz cada vez que telefonavam para a residência dos Chaplin (um castelo na área de Lausanne, perto do cemitério) e propunham ao mordomo, um homem inabalável chamado Giuliano Canese, um preço distinto em troca do caixão.

Primeiro pediram 600.000 francos suíços (pouco mais de 2 milhões de reais). A viúva de Charles Chaplin, Oona (com quem teve oito filhos, ela era filha do dramaturgo americano Eugene O’Neill), negou-se a ceder e declarou que seu marido “teria considerado ridícula toda esta situação”. Aí os sequestradores experimentaram mudar de moeda, vai que o problema fosse a divisa, e pediram 600.000 dólares americanos (pouco menos de 2 milhões de reais).

Imagem do túmulo de Charles Chaplin (no cemitério de Corsier-sur-Vevey, Suíça), profanado em 1978
Imagem do túmulo de Charles Chaplin (no cemitério de Corsier-sur-Vevey, Suíça), profanado em 1978Getty

A resposta continuava sendo negativa. E que tal 500.000 dólares? Nada. A matriarca dos Chaplin ficou irredutível até eles baixarem o valor para 100.000 dólares (328.000 reais), aí aceitou, mas só como parte de uma armadilha para que a polícia os capturasse. Ela nunca teve a menor intenção de lhes dar nenhum centavo. Ficou combinado que o mordomo da família entregaria pessoalmente aos criminosos uma maleta com os 100.000 dólares exigidos. Um policial suíço se fez passar pelo mordomo e dirigiu o Rolls Royce em direção ao lugar da entrega, mas a má sorte foi tanta que o carteiro local, ao ver um homem desconhecido dirigindo o automóvel dos Chaplin, começou a segui-lo. A polícia deteve o carteiro por engano e a missão foi abortada.

Mas os ladrões não se rendiam e informaram, com assombrosa precisão, que telefonariam novamente para a residência dos Chaplin para renegociar o resgate em 17 de maio às 9h30. A polícia lançou uma operação de vigilância sobre mais de 200 cabines telefônicas de Lausanne e assim conseguiu deter Roman Wardos, um polonês de 24 anos, e depois seu cúmplice Gantscho Ganev, um búlgaro de 38.

A paródia de Adolf Hitler que Chaplin imortalizou em 'O Grande Ditador' ficou quase tão famosa quanto o próprio ditador alemão
A paródia de Adolf Hitler que Chaplin imortalizou em 'O Grande Ditador' ficou quase tão famosa quanto o próprio ditador alemão

Esses dois mecânicos confessaram que, pressionados por sua precária situação econômica, tinham começado a pensar em cometer um crime que resolvesse seus problemas sem usar a violência. E um dia, quando estavam lendo o jornal, viram a notícia de que alguém tinha roubado um cadáver na Itália e havia pedido um resgate para devolvê-lo. Então tiveram a ideia: roubariam o cadáver de Chaplin. Onde qualquer outra pessoa veria um plano arrepiante, Wardos e Ganev viram uma oportunidade de encher os bolsos de dinheiro.

Wardos, o cérebro (para dizer de alguma forma) da operação, foi condenado a quatro anos e meio de trabalhos forçados e Ganev, a 18 meses. Ambos enviaram uma carta de desculpas a Oona Chaplin, que os perdoou sem titubear. E quando a mulher de um deles (“do mais simpático”, como recorda Eugene Chaplin) também escreveu uma carta desculpando-se, a viúva respondeu: “Olhe, já os perdoei”.

Os astros de Hollywood, os gênios da arte e os ícones culturais (e Charles Chaplin era as três coisas de uma vez) nunca deixam de gerar histórias sobre sua vida, nem mesmo depois de sua morte. No entanto, Chaplin é o único que, literalmente, protagonizou um espetáculo depois de morto. Um história que podia perfeitamente ter sido escrita por ele mesmo: o perigo absurdo, a comédia que nasce da amargura, a pobreza que leva suas vítimas a cometer disparates miseráveis e, acima de tudo, a reescrita dos valores culturais: a típica frase “descanse em paz” se transformou, neste caso, em uma comédia absurda.

Durante dez semanas, a polícia suíça e a Interpol praticamente não encontraram pistas além de telefonemas anônimos nos quais alguns brincalhões diziam estar com o caixão

Tanto que, há quatro anos o francês Xavier Beauvois dirigiu O Preço da Fama, uma comédia que conta esse caso com as ferramentas que o próprio Chaplin teria utilizado: humor físico durante a profanação, protagonistas vagabundos com tendência a se meter em confusões e mal-entendidos desconcertantes quando os sequestradores perceberam que dezenas de anônimos estavam telefonando para a família Chaplin para pedir resgate. Como ocorria sempre com o mítico alter ego de Carlitos, o Vagabundo, os desventurados não serviam nem para o crime. Eugene Chaplin apareceu no filme interpretando o dono de um circo: “Fizemos esta comédia para que o mundo conhecesse a maluquice que foi aquela história”.

Mas não se levantem de suas cadeiras ainda, porque ainda falta a resolução final: onde, afinal, estava o cadáver? Os ladrões só recordavam que o haviam enterrado “em um campo de milho”. A chuva tinha feito com que as plantas crescessem profusamente e, depois de vários dias de busca, a polícia o encontrou em uma plantação de trigo a um quilômetro da mansão dos Chaplin.

Uma paisagem tão bonita que a própria viúva exclamou que, de certa forma, era uma pena retirá-lo dali. Mas ele foi retirado. Preferiram sepultá-lo em seu túmulo original e cobri-lo com concreto, como um féretro maldito, em vez de terra.

O agricultor, por sua parte, ficou furioso com o sacrilégio perpetrado em seu terreno, mas depois acabou instalando nele uma placa comemorativa: “Aqui descansou Charles Chaplin. Brevemente”.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_