_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

A lição de Lindacy, a ‘desaletrada’ da Rocinha

O poder público fecha a biblioteca da comunidade; prefere atingir a juventude apenas com balas e repressão

Dona Lindacy Menezes no debate na Garagem das Letras, dia 1º de fevereiro
Dona Lindacy Menezes no debate na Garagem das Letras, dia 1º de fevereiro Roberto Pontes (Você É o que lê)
Mais informações
Sin titulo
Vale tudo para tirar o Sapo Barbudo do jogo
O amor que fica e o amor que recicla
Contra o ‘habeas corpus’ pra macharada

“Vocês me desculpem, sou uma desaletrada, mas agora tomei gosto por dizer as coisas, por contar a minha história”, diz Lindacy Menezes, 64 anos, doméstica, ao revelar a descoberta da literatura. Criada por uma dona de um bordel no Recife, a pernambucana vive na favela da Rocinha, Rio, desde os anos 1970. Era uma das mais animadas vozes de um encontro do projeto “Você é o que lê”, na noite de quinta-feira, dia 1º, na Garagem das Letras, centro cultural de moradores da comunidade carioca.

“Desaletrada, nem sabia o que era texto, o que era poema”, segue Lindacy, antes de mandar os seus versos para a plateia. Convidado especial do evento, o jornalista e escritor Zuenir Ventura, autor de “Cidade Partida”, clássico moderno sobre a violência brasileira, escuta atentamente a prosódia e comenta: “Isso é Guimarães Rosa!”

A menina criada no cabaré da zona portuária recifense é uma narradora de primeira. Há cinco anos soube de uma oficina da Festa Literária das Periferias (Flup) e resolveu mandar umas linhas para concorrer a uma vaga. Ditou “umas besteirinhas” para a sua filha - não sabia usar o computador - e foi selecionada. “Depois disso, não parei e não paro nunca mais”. Aguarde o livro com a saga dessa mulher. Estarei na fila de autógrafos.

Participo do “Você é o que lê” na companhia de Gregório Duvivier e Maria Ribeiro. A edição da Rocinha foi uma das mais comoventes nestes três anos de estrada. Esteve mais para um “Você é o que ouve”. Há uma fome de contar histórias naquele cenário onde muitos becos e vielas estão manchados de sangue. Sangue de gente muito jovem. Meninos imprensados entre policiais e bandidos. É preciso contar a própria história para que não vingue apenas o relato oficial dos boletins de ocorrência. Viver é o direito de narrar.

Michele Dias, testemunha atenta aos acontecimentos da Rocinha, lembra o caso do seu tio Amarildo, pedreiro desaparecido, em julho de 2013, depois de ser arrastado por PMs à Unidade de Polícia Pacificadora, UPP. Durante três meses, o poder estadual tentou emplacar muitas versões fictícias. Em outubro, promotores revelaram o que a favela inteira tentava relatar: Amarildo havia sido morto pela polícia.

Outra obra de ficção do Estado, com auxílio do departamento de mentiras municipais, é o funcionamento da Biblioteca Parque. Aberta em 2012, sob influência e modelo dos centros de leitura de Bogotá e Medellín (Colômbia), fechou as portas na cara da comunidade desde o ano passado. A alegação é de falta de recursos para bancar os funcionários. O prefeito Crivella, em visita à favela, prometeu, em aliança com a secretaria estadual de Cultura, reabrir o edifício. Ficou apenas na pregação vazia, para variar.

Bibliotecárias contaram o efeito devastador do fechamento do espaço cultural que reunia centenas de moradores atraídos pelos livros, a DVDteca, o cineteatro, estúdio de gravações, internet comunitária, cozinha-escola etc. Um desastre social, resumiram mais uma tragédia carioca e brasileiríssima. Dinheiro para as balas do extermínio da juventude periférica, é sempre bom lembrar, nunca falta.

Como se cantasse “a dor da gente não sai no jornal”, versos de Chico Buarque, a Rocinha é um mar de histórias e quer contar a sua própria versão das ocorrências. Obrigado, Lindacy, pelas lições de existência. Ah se todos os ditos letrados fossem iguais a você.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor do romance “Big Jato” -adaptado para o cinema pelo diretor Cláudio Assis- entre outros livros.

 

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_