A PM que foi proteger a Rocinha deixa um rastro de denúncias por abusos
Moradores da maior favela do Rio apresentam reclamações e comandante do grupo alvo da maioria delas vira corregedor da corporação
Na comunidade da Rocinha, a maior favela do Rio, a solução a um problema pode virar um problema em si mesmo. O tráfico submete os vizinhos sob suas leis e armas, como alguns policiais militares que, cobertos por uma toca ninja e vestidos com roupa de camuflagem, também semeiam o terror. Em apenas um mês pelo menos 35 moradores denunciaram oficialmente os abusos e ilegalidades que sofreram de agentes da PM que atuam na comunidade.
No último dia 11 de outubro, a jovem Luiza* tomava conta de uma senhora de 85 anos na casa de uma vizinha quando ouviu um barulho na porta principal. Após o golpe, um policial, com roupa de camuflagem cinza, entrou na casa aos gritos. “Quero saber onde está tudo, eu estou com uma arma dentro da mochila, uma pistola que, se você não dizer onde está tudo, eu vou jogar esta arma para você e você ficará presa”, lhe disse. Segundo o depoimento, o policial revirou a casa e continuou: “Você estará muito fudidona e pegará muita cadeia se eu achar alguma coisa aqui”. O agente chamou um outro colega para dentro da residência e ameaçou: “Vou revirar tudo aqui, eu vou achar e colocar tudo na sua conta”. Após colocar a casa de cabeça para baixo e quebrarem a cama da idosa, não encontraram nada.
Os moradores assinaram seus relatos com nomes, sobrenomes e endereço e alguns até se mostraram dispostos e capazes de identificar seus agressores. Venceram o medo num lugar onde falar mais da conta pode ser uma sentença de morte. Nos depoimentos recolhidos pela Corregedoria da PM e pela auditoria Militar do Ministério Público, alguns já publicados pelo jornal Extra, há agressões, ameaças, furtos, espancamentos e invasões coordenadas por policiais. Os relatos detalham até a execução de um traficante, ferido e já rendido. O EL PAÍS teve acesso a 25 dessas 35 denúncias. “Os relatos são muito convincentes, têm fatos, datas, locais, não são evasivos”, avalia Allana Poubel, promotora da Auditoria Militar. “Quem está a mando do tráfico não vem sentar aqui e chorar enquanto conta sua história”
Todas as histórias detalhadas aconteceram durante a ocupação da comunidade pelas forças policiais, mais especificamente após as Forças Armadas abandonarem o cerco que mantiveram de 22 a 29 de setembro na comunidade. A Rocinha, após mais de uma década de certa paz, virou alvo de disputa entre dois bandos da facção Amigos dos Amigos, uma rixa que, no dia 17 de setembro, desembocou numa invasão armada de traficantes pelo controle do território. A tentativa frustrada de invasão trouxe instabilidade e insegurança. Desde então, o Comando Vermelho, a maior facção do Rio, acolheu os desertores e passou a dominar o tráfico de drogas no local. Os tiroteios, as operações das forças de segurança e os acertos de contas voltaram à rotina do bairro. Os abusos policiais também
Os depoimentos relatam um leque de invasões ilegais a residências – a PM só pode entrar em domicílios sem mandado se houver fundadas razões de que ocorre flagrante delito no local –, mas também furtos. Quando os policiais vão embora os moradores percebem que sumiram algo mais que pacotes de biscoitos.
"Perdeu, vagabundo!"
Luiz denunciou que após a entrada não autorizada na sua residência, os policiais levaram com eles uma pulseira e um cordão de ouro da filha e 400 reais. De Carlos teriam levado também dois cordões banhados em ouro e uma dedeira de prata. Após ordenar tudo o que os policiais reviraram, Marcelo sentiu falta de duas alianças, dois relógios, uma Play Station e até dois desodorantes.
Vários relatos revelam ainda a presença de um homem armado que acompanha os policiais e veste, como eles, roupas de camuflagem. Segundo os depoimentos esse homem, normalmente trajado com toca ninja, seria um informante da PM e conhecido por sua relação com a banda de traficantes derrotada na disputa pela Rocinha. O homem, segundo três depoimentos, têm carta branca para agredir ou ameaçar moradores na presença das autoridades.
Uma dessas agressões aconteceu no dia 25 de outubro. Antônio, de trinta e poucos anos, estava na sua casa quando uma dezena de policiais do Choque invadiu sua sala. Os policiais estavam acompanhados desse homem, com balaclava na cabeça, que gritou: “Perdeu vagabundo!”. O mesmo homem retirou a toca e disse: “Falei que ia te pegar, você tá valendo um dinheiro no São Carlos [favela do Rio de onde teria partido o apoio para o bando derrotado]”. Após cobrir sua face de novo, o homem que acompanhava os militares o chutou e socou várias vezes e roubou um celular e 400 reais que havia num estante.
Os policiais procuravam uma arma que não aparecia. “Você terá que dar uma casa com arma para a gente ou se não vai morrer”, lhe disseram. A cena não terminou na casa e os policias algemaram Antônio e o levaram para a rua com a cabeça coberta. Não sabe o que iriam fazer com ele, mas se livrou. De repente, um policial nervoso tirou suas algemas e o liberarou. “Fudeu, a Corregedoria está aí, vamos ter que liberar ele”, disse que ouviu. Antônio não sabe ler e, mesmo se os policiais levassem sua identificação escrita no uniforme, o que não costuma ser o caso, ele não teria como saber seus nomes.
Outros depoimentos de vizinhos de uma mesma rua, usada como rota por criminosos, denunciam a execução de um traficante rendido. Ferido num pé e armado com um fuzil, o rapaz invadiu de madrugada a residência de um casal e exigiu refugio. Ameaçados pelo criminoso a família ficou quieta num quarto até um grupo de policiais aparecer na casa. Uma vez confirmaram que o casal nada tinha a ver com o tráfico de drogas, os agentes pegaram o traficante, apagaram a luz e alertaram antes de fechar a porta: “Vocês não viram nada”. Ao saírem ouviram-se três tiros e no dia seguinte a rua inteira soube que o traficante foi morto. Segundo os depoimentos de outros vizinhos o rapaz teria suplicado: "Não me mata, pelo amor de Deus, me leva preso".
O casal, após trocar o cadeado da sua porta mais de quatro vezes, abandonou sua própria casa. Segundo a denúncia, os policiais passaram a usar o local como refúgio fazendo tocaia para surpreender criminosos. Eles ainda, segundo seu relato, foram ameaçados de morte. Sua situação é complicada. Temem que policiais queiram acertas contas pela denúncia, enquanto traficantes podem acreditar que eles permitiram o uso da casa pelos PMs.
O chefe dos agressores passa a ser seu fiscal
As denuncias alem de revelarem espaços onde o braço armado do Estado não tem leis, apontaram um agressor recorrente: o Batalhão de Choque, corpo de elite da PM do Rio que costuma atuar em manifestações e que foi designado para ocupar a Rocinha com patrulhamento ostensivo. 20 dos 35 relatos identificam policiais do Choque, trajados com roupa de camuflagem cinza, como os autores das violações. Precisamente, o comandante deste Batalhão, o coronel Jorge Fernando Pimenta, acaba de ser nomeado novo corregedor da PM, o fiscal dos desvios policiais. O anterior deixou seu cargo após uma queda de braço com a Polícia Civil para assumir a investigação do assassinato da turista espanhola na Rocinha.
A nomeação provocou estranheza no Ministério Público, que requisitou todas as denuncias para serem apuradas no âmbito da Auditoria Militar do MP e não na Corregedoria. Pimenta ainda causou certa polêmica ao exonerar seis oficiais do órgão que vinham se destacando pelo seu desempenho, entre eles o major responsável por recolher os depoimentos dos moradores da Rocinha. Segundo dados levantados pelo G1, nos três primeiros meses da equipe à frente das unidades correcionais, de julho a setembro de 2017, foram presos 62 PMs – um aumento de 588% no número de prisões se comparado ao trimestre anterior. De abril a junho, antes de os oficiais assumirem, houve nove prisões de policiais.
Considerado pelos promotores, por um lado, como “um oficial que abrilhanta a Corporação da Policia Militar”, por outro, questionaram o timming. “Para as Promotorias de Justiça junto a Auditoria de Justiça Militar, a sua nomeação somente ocorreu num momento inoportuno considerando que policiais do Batalhão do Choque, do qual era o comandante, são alvos de diversas notícias de práticas de crimes ocorridos na ocupação da Rocinha”.
A assessoria da PM foi questionada por diferentes veículos, assim como por El PAÍS, sobre a decisão de nomear o coronel Pimenta como corregedor. Seja quais forem as perguntas, o órgão responde sempre com informações genéricas e não requeridas.
*Os nomes dos denunciantes foram trocados por motivos de segurança
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