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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

As mulheres mentem tanto quanto os homens

Dar crédito às vítimas pelo fato de se apresentarem como tal é abrir a porta para as vinganças, as calúnias e os ajustes de contas

Woody Allen, em 2016 no festival de Cannes
Woody Allen, em 2016 no festival de CannesThibault Camus (AP)
Javier Marías

Mulheres estupradas, assediadas, tocadas sem seu consentimento, tudo isso  existe e sempre existiu, infelizmente. Que haja uma rebelião contra isso só pode ser bom. Mas há coisas boas demais hoje que logo se tornam regulares, diante do exagero, da exacerbação e da anulação de matizes e graus.

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Tudo começou com o caso Weinstein, cujas práticas são tão antigas quanto o mundo. Na década de 1910 foi cunhada a expressão “couch casting” (teste do sofá) para se referir às audições em que os produtores de Hollywood e Broadway frequentemente assediavam as aspirantes a atrizes (ou os aspirantes, segundo o gosto). No escritório costumava haver um sofá bem à mão, para propósitos evidentes. O hábito me parece repugnante por parte desses produtores (como me parece a qualquer indivíduo poderoso), mas nisso não havia violência. Produzia-se um tipo de transação, à qual as garotas  podiam se negar; é uma forma de prostituição menor e passageira, se aceitavam. “Em troca de que este porco transe comigo, consigo um papel para iniciar minha carreira”. Pensar que o único motivo por que às vezes nos dão oportunidades é nosso talento declarado é pensar com ingenuidade excessiva (acontece às vezes, mas nem sempre). Com frequência há transações, compensações, pactos, benefícios mútuos que entram no jogo. A índole de alguns é repulsiva, sem dúvida, mas cabe responder “não” a tais propostas. E também é preciso esquecer que não foram poucas as mulheres que procuraram e satisfizeram o homem velho, rico e feio, famoso e desagradável, poderoso e seboso, exclusivamente por interesse e proveito próprio. Não é preciso recorrer a nomes para lembrar a quantidade considerável de mulheres jovens e atraentes que se casaram com homens decrépitos não exatamente por amor, nem sequer por desejo sexual.

Agora o movimento MeToo e outros estabeleceram duas pseudoverdades: a) que as mulheres são sempre vítimas; b) que as mulheres nunca mentem. Em função da segunda, qualquer homem acusado é considerado automaticamente culpado. Esta é a maior perversão imaginável da justiça, a que produziu a Inquisição e os totalitarismos e o nazismo e o stalinismo e o maoísmo e tantos outros. Em vez de ser o denunciante quem deveria demonstrar a culpa do denunciado, este é quem tem de provar sua inocência, o que é impossível. (Se me acusam de ter esfaqueado uma idosa no parque, e a mera acusação é dada como verdadeira, eu não posso demonstrar que não o fiz, exceto se tiver um álibi claro.) De fato, nesta campanha, prescindiu-se até do julgamento. As redes sociais (manipuladas) se arvoraram de júris populares, e são a mesma multidão que exigiu a execução de Jesus e a libertação de Barrabás em seu tempo. Talvez sejam culpados, mas basta a acusação e o consequente linchamento midiático para que Spacey ou Woody Allen ou Mario Testino percam seu trabalho e sua honra, para que passem a ser pestilentos e sua vida seja arruinada. A justificativa dessas condenações express é que as vítimas não conseguem apresentar provas do que afirmam, porque quase sempre estavam sozinhas com o criminoso quando ocorreu a violação ou o abuso e não há testemunhas. É verdade, mas isso (os criminosos procuram que seja assim) ocorreu a todas as vítimas, de todos os crimes, e por isso muitos ficaram impunes. Má sorte. Quantas vezes não vimos filmes em que alguém se mata para conseguir provas ou uma confissão com armadilhas, porque sem isso é palavra contra palavra e perderiam o julgamento?

Assim está montada a justiça nos Estados de Direito, com garantias; não é o que acontece nas ditaduras. Por isso me surpreendi ao ler editoriais e artigos neste jornal em que se afirmava que as injustiças derivadas de todo esse movimento eram “presumíveis” ou coisas do gênero. É algo que vai contra todos os argumentos que, desde Beccaria no século XVIII, se não antes, defenderam a abolição da pena de morte. A ideia dos defensores da liberdade, da razão e dos direitos humanos era justamente a contrária: “Antes fiquem sem castigo alguns criminosos do que sofra um só inocente a injustiça da prisão ou da morte”. Agora se defende o oposto. Se a falta de provas contra os acusados se estendesse a outros crimes, e aqueles dependessem das volúveis massas, a justiça acabaria.

Dar crédito às vítimas pelo fato de se apresentarem como tais é abrir a porta para as vinganças, as revanches, as calúnias, as difamações e os ajustes de contas. As mulheres mentem tanto quanto os homens, ou seja, algumas sim e outras não. Se for dado crédito a todas por princípio, estaremos entregando uma arma mortífera às invejosas, às despeitadas, às malvadas, às misândricas e às que simplesmente não gostam de alguém. Poderiam inventar, retorcer, distorcer, tergiversar impunemente e com sucesso. O resultado deste “open bar” é que as acusações fundadas e verdadeiras —e tenho fé de que haja milhares— serão objeto de suspeita e, pior ainda, cairão no vazio, haja provas ou não. Isso seria o mais grave e pernicioso.

Javier Marías é escritor, tradutor e editor espanhol, membro da Real Academia Espanhola

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