Feitiço do tempo
Sou da época em que o ano só começava depois do Carnaval e as eleições eram decididas nas urnas — não no tapetão dos tribunais
“Uma cerveja antes do almoço é muito bom/ pra ficar pensando melhor.” Chico Science na vitrola, na primeira sextança de Oxalá, e um mote pra começo de 2018, à beira de uma churrasqueira em Jandira, novo Oeste da metrópole, arredores de São Paulo de Piratininga, podemos começar os trabalhos?
Prefiro não, estimado amigo Bartleby. Para que pressa, leitorxs? Muita marcha lenta nessa hora. “Pianinho, pianinho”, pede o Benito de Paula. Slow-food, fumacê, maresia, uma vasta rede cearense à sombra dos buritis, para que pressa se a inevitável Velha da Foice nos espera em alguma esquina do acaso? Tira esse pé do acelerador, menino, agita apenas as partículas do desejo de um lento papai-mamãe na siesta — a vagarosa e bela luta de um amor sem data de validade.
Sou da época em que o ano só começava mesmo depois das cinzas dos pecados carnavalescos. Sigo, anacrônico e solitário, como um homem dessa ordem, desse tempo.
Sim, caríssimo Humberto Werneck, colega de dores crônicas e agudas, o veraneio está com os dias contados. O ano está começando cada vez mais cedo, antes do último pipoco colorido do foguetório de Copacabana. Os botões da ansiedade fumegam nos dedos dessa gente a queimar falanges, falanginhas e falangetas.
Mal arrotamos a uva passa e a sensação térmica é que Jesus Cristo, na demarcação do calendário, já vive os mistérios dos 40 dias no deserto. Querem fazer da quaresma quase um CarNatal, uma Micaralho — a micareta da cidade pernambucana de Paudalho —, algo muito fora de época. Mesmo. Passa o bacalhau, passa o ovo de Páscoa...
Permitam-me, avexados de todas as ordens, bom mesmo era quando, a essa altura da peleja, ainda estávamos remoendo as dúvidas do século XIX: Capitu traiu ou não o Bentinho? Um mistério literário bem melhor que a condenação de véspera de um crime que poderia ter acontecido, mas não parece, nem de longe, o caso: o rolo do tríplex. Vou acabar me juntando aos sem-teto e tornando útil esse imóvel. Maldito 2018 que começa a decidir as eleições pela turma da toga, não pelas urnas.
E ainda estamos em janeiro. Ah essa pressa sem veraneio, amigo Werneck, não leva a nada. Repare no presidente do tal Mercado, que humilhação, teve que cumprir a agenda das grandes sacanagens políticas com uma sonda para urinar. Imagina tomar uma decisão que ferra a maioria dos brasileiros -ah, as reformas!-, enquanto solta um xixizinho dolorido ladeira abaixo. Que cena, amigos. Sou do tempo em que até o golpismo se dava direito a um recesso.
Vamos tirar férias da política. Eu tento. Do futebol, consigo, só vejo pelada que não envolva a roubalheira da CBF/Del Nero, inimputável aos olhos das autoridades locais. Reza a lenda, não tão lenda assim, que a PF, nos seus encontros turísticos, sempre usufruiu de colaborações da CBF de Ricardo Teixeira e seus bons companheiros. Você já viu, amigo, a PF investindo meio dia de serviço a sério contra a bandalheira futebolística? Gostaria de ser desmentido.
Só me resta chupar — fazer o quê? — o frio chicabon da nostalgia e lembrar do tempo em que o ano só começava depois da folia de Momo. Muita gente reclamava. A queixa antropológica: que país atrasado, que preguiça ibérica, que falta de modernidade. Eu diria que maravilha. Ridícula essa pressa. Vede quanta desgraça antecipada, quanta treta, quanta sede de vingança, quanto ressentimento histórico. E o bando de Brasília, com ou sem sonda, despejando os dejetos nas nossas cabeças, como na velha imagem dos estádios.
Relaxa, cronista, mal os estaduais começaram e você já está nesse stress. É ano de Copa, do samba-exaltação da pátria em chuteiras, se liga no pagode russo, malandragem.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Os machões dançaram -crônicas de amor & sexo em tempo de homens vacilões (editora Record), entre outros livros.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.