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Coluna
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Só os sem-terra e sem-teto salvam o Brasil

Possuído pelo catimbó de Brecht, em um ambiente radical-chique, o cronista trata dos homens e mulheres imprescindíveis

Militantes do MTST durante marcha pró-moradia popular em São Paulo.
Militantes do MTST durante marcha pró-moradia popular em São Paulo.Sebastiao Moreira (EFE)

Dias desses, em um breve encontro com Guilherme Boulos — líder do movimento dos sem-teto —, na casa de Caetano Veloso, no Rio de Janeiro, baixou um caboclo Brecht neste cronista que vos bafeja a nuca e eu repetia, sob efeito do catimbó e da cachaça sincretista de Zé Pelintra, aqueles versos sobre os homens que lutam toda a vida e se tornam as imprescindíveis criaturas. Lembramos, óbvio, de um amigo comum, para quem ligamos, em plena madrugada: o cearense Preto Zezé, necessário dirigente da Cufa, a Central Única das Favelas, cabra de responsa em plantão permanente com os direitos dos lascados do mundo inteiro, uni-vos.

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Naquele ambiente que o escritor Tom Wolfe definiria como “radical chique” ainda nos anos 1960, passamos em revista um listão dos imprescindíveis brasileiros. Lembro-me bem, a infalível memória de todas as ressacas, quando bradei o nome de Bárbara de Alencar, heroína do Crato, a primeira mulher a assumir papel de protagonista na história do Brasil ao botar para quebrar no movimento da Confederação do Equador, ainda em 1824. Moços, pobres moços, procurem saber quem foi esta heroína, vale muito a pena.

Daí tratamos também de Josué de Castro (1908-1974), médico e cientista da fome, o pernambucano autor de “Homens e caranguejos” que inspirou as imagens de caos e lama de Chico Science e do mangue beat. “Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça/ quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça!”, cantava o malungo, no seu pós-tropicalismo.

Imprescindíveis criaturas, caro Boulos, como aqueles dez mil sem-teto que marcharam esta semana da ocupação de São Bernardo ao Palácio dos Bandeirantes, que bela romaria em busca do que lhes é de direito no latifúndio urbano. Pobre de espírito quem chama de vagabundo quem não tem casa ou terra no país que sempre foi o reino dos capatazes, sempre viveu sobre o tacão da monocultura — da cana-de-açúcar da Casa Grande à Sojolândia. A cara de pau, assim como o agro, é pop.

Entre os milhões de sem-qualquer-coisa, os sem-teto do MTST e os sem-terra do MST, ave palavra, são um alento. Ainda mais nesta hora calada que mais parece um minuto de silêncio sem fim antes de um jogo da Pátria em chuteiras.

Os sem-teto e os sem-terra lutam todos os dias, estes são imprescindíveis, velho Brecht. Eles não se rendem à mudez geral da nação. Eles aguentam as buzinas dos apressadinhos da urbe — acelera, São Paulo! Eles suportam a história universal da infâmia e todos os xingamentos de “vagabundos”. Será que temos ao volante ou nas caixas de comentários da internet alguém que já trabalhou mais que essa gente? Duvido muito.

Eu sempre quis muito como cronista vira-lata, mas nem vou citar a censura que o Caetano sofreu ao não poder cantar o que seria a mais genial das músicas de acampamento:

“Terra! Por mais distante/ o errante navegante/ quem jamais te esqueceria?...”

Os baianos e os paraíbas, a gente toda do meu pequeno exílio sem um sítio ou um quarto-sala para sonhos particulares, certamente amariam. Repare na ironia da injustiça histórica: justamente o seu Morando (PSDB), prefeito de São Bernardo, vetou, com a mão amiga da jurisprudência que fode pobre, a parada. Assim que funciona, Preto Zezé, ninguém sabe mais disso do que teu repertório de peleja no Ceará e no mundo.

Quem quiser que fale mal ou tire onda do Caetano, mas acho bonito que este menino da cinquentenária Tropicália esteja na luta lenta, como sopraria um rapaz de Irará, Bahia. Que sorte deste país tê-lo no jogo das contradições políticas. Importante, baby. Lá vai o Brasil de volta para o o ABC paulista, beirada nervosa do punk-rock, discutir o redemoinho que nos faz vivos desde que o Lula virou, para o espanto geral da taba Tupi, o maior presidente da história da República. Com todos os acertos e pisadas. Eterno retorno ao chão da fábrica e aos que não têm um solo sobre os pés para largar os sapatos ou chinelos.

Relax, amigos, é apenas o começo do fim do mundo, as criaturas que lutam toda vida nunca foram tão necessárias. O resto é silêncio.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “A Pátria em sandálias da humildade” (editora Realejo, 2017). Comentarista dos programas “Papo de Segunda” (GNT) e “Redação Sportv”.

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