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Viver sem nunca ter ouvido “te amo”

Milhões de mulheres da América Latina vivem, desde criança, rotina de abusos, exploração sexual e violência. Estas são suas histórias

Soledad sofre desde criança uma longa história de abusos, exploração sexual e violência.
Soledad sofre desde criança uma longa história de abusos, exploração sexual e violência.Miguel Lizana (AECID)

Dentro de dez anos, diz Soledad, se voltarmos a nos ver, faremos a entrevista na casa dela. Na dela, de verdade. E não nessa biblioteca emprestada pelo projeto Camsat (Centro de Ajuda Mútua Saúde Para Todos), em uma região de Los Bañados, um bairro de Assunção onde Soledad mora ao lado de mais 120.00 pessoas, expostas a cada inverno à alta do rio Paraguai. Muitos moradores, como ela mesma, já passaram até dois anos em abrigos precários. Mas, dessa vez, o rio não foi a causa de a entrevista ser realizada em um lugar que não a casa em que mora com seu parceiro e uma cunhada.

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Aos 21 anos (sua primeira gravidez foi aos 16) já viveu uma longa história de resistência. Acaba de ser inscrita no censo de famílias realizado pelo Camsat. Não incluíram seu parceiro nem sua cunhada. Pode receber uma moradia familiar entre as primeiras 1.600 que serão construídas em até oito anos. Faz parte do projeto de ampliação do corredor fluvial de Assunção (La Costanera). Para isso, é necessário elevar o terreno em vários metros e realocar as pessoas que moram nas zonas de inundação do rio.

Para Soledad, o mais parecido a uma casa própria foi o barraco em que se refugiou da elevação do rio durante dois anos, em 2014 e 2015. O inverno transforma a vida dos moradores da região em um inferno de incertezas. Ela ficou lá com seus dois filhos. O pai deles teve que viajar para uma zona mais afastada. E então sim ela se sentiu a salvo. Não só do rio.

Mas agora teve que voltar para casa, onde é vítima da brutalidade de seu parceiro, em especial quando está sob os efeitos de drogas (principalmente crack) e dos desequilíbrios de sua cunhada. Então, por que voltou para lá?

— Não tinha outro lugar para onde ir.

Quando criança sofreu abusos e exploração sexual. Daquela menina ficou a voz fina e o olhar brilhante. Continuam presentes nela, desarmando quem a escute. Ou são os restos que ainda guarda de uma longa história de resistência. De baixa estatura, hoje veio vestida com um casaco preto, aberto, que se cruza em forma de abraço. Faz frio. Usa chinelo de borracha, sem meias. O cabelo preso por uma pregadeira azul, como se tivesse que sair para um mandado rápido.

Na América Latina, para cada três pessoas grávidas, uma é menor de idade. Alguns casos de mulheres que foram vítimas de estupro dentro de casa até chegam aos noticiários. Imediatamente depois, entretanto, quase todos acabam no esquecimento.

No Paraguai, mais de 600 meninas entre 10 e 14 anos engravidam a cada ano

O aborto continua totalmente proibido em países como El Salvador e Nicarágua, apesar de ser praticado ilegalmente. Em outros, como no Paraguai, só é autorizado quando há risco iminente de morte materna no parto, justamente uma das principais causas de mortalidade de adolescentes latino-americanas. Em alguns casos, como o da menina de 10 anos conhecida como Mainumby, que foi divulgado há dois anos, não se aplica, apesar de ela ter sido vítima de estupro cometido por seu padrasto.

Soledad nasceu em uma família de 11 irmãos. Nunca viveu com seu pai. Sua mãe morava com outro homem até que ela morreu, aos 41 anos, vítima de Aids.

— Minha mãe foi contagiada pelo vírus pelo homem com quem vivia. Eu não gostava muito dele. Agora ele está preso por violência contra sua outra mulher.

— Por que não gostava dele?

— Porque quando minha mãe estava dormindo ele me tocava.

— Foi o primeiro abuso que você lembra?

— Não. Aos nove anos, me lembro que não tínhamos água aqui em Los Bañados. Tinha que ir buscar em um depósito. O dono me dava 2.000 guaranis (cerca de 1 real) se eu deixasse ele me trocar. Então eu levava o dinheiro para minha mãe. Dizia que ele tinha me dado de presente.

— Nunca disse a verdade para ela?

— Não… Quando tinha festas eu saia com homens que também me davam dinheiro. E eu dava para ela. Ela ficava muito feliz. Acho que ela sabia, mas eu nunca disse nada.

— Acha que ela fazia algo parecido para sustentar a família?

— Sim.

— Gostava dela?

— Sim.

— Sente falta dela?

—Sim.

Caterina tinha uma vida melhor enquanto esteve em um albergue para meninas e jovens sob risco de exploração sexual. O projeto fechou as portas por falta de fundos.
Caterina tinha uma vida melhor enquanto esteve em um albergue para meninas e jovens sob risco de exploração sexual. O projeto fechou as portas por falta de fundos.Miguel Lizana (AECID)

Com 11 anos, sua mãe a mandou para trabalhar em um bar administrado por sua tia. Lá se encarregava de atender diretamente os clientes. Os homens a levavam. Soledad conta dizendo que “ia com eles, fugindo da tia”.

— Na época estava no 3º ano primário, e nunca mais voltei para a escola.

— Gostaria de continuar estudando?

— Já perdi a esperança de estudar. Com dois filhos e sem família aqui, sem trabalho...

Segundo a campanha Meninas, Não Mães, lançada no ano passado pela Anistia Internacional, entre outras organizações, no Paraguai, 19% das grávidas entre 15 e 19 anos param de estudar. Em outra parte de Bañados mora Loida, de 17 anos e na segunda gravidez (a primeira foi aos 12). Com o cabelo alisado e brilhante, vestida com roupa de domingo, em uma aula de classe, garante que não vai abandonar os estudos, custe o que custar. Assim como Soledad, mora perto do rio e já teve que fugir dele várias vezes. Mas, ao contrário de Soledad, contou com o afeto de sua família e também de seu parceiro. Além disso, tem o apoio da Associação Mil Solidários e de seu Centro de Atenção Familiar (CAFA), financiado em parte pela fundação do grupo empresarial Vierci.

Graças ao CAFA, onde são atendidas 60 meninas-mães com apoio escolar, formação e atenção psicossocial, explica Soraya Bello, coordenadora do Mil Solidários, essas jovens não deixam de estudar, o que é fundamental, não apenas para sua formação, mas também para sua própria autoestima e desenvolvimento. Com o apoio da Agência Espanhola de Cooperação e do governo da província espanhola de Huelva, o local chegou a atender até 120 mães adolescentes. Mas com os cortes de fundos, reduziu o número de beneficiárias.

Soledad não teve os mesmos apoios recebidos por Loida para enfrentar os desafios de suas gravidezes precoces. Antes dos 15 anos, quando voltou a morar com sua mãe após ter sido vítima de abuso e exploração sexual no bar de sua tia, começou a consumir crack. Os homens a levavam a motéis, casas do bairro ou mesmo para a rua.

— Também tinha os homens do rio. Navegantes que quando deixavam os barcos nos estaleiros, nos levavam em lanchas pelo rio. Íamos em grupos de quatro ou cinco meninas. Lá ganhávamos mais.

Uma vizinha de Soledad mora ao lado de um estaleiro. Prefere que a chamemos de Caterina. Não quer que seu nome verdadeiro seja divulgado. O rio molha a entrada de sua casa. É um quarto feito com restos de um refúgio, que também poderiam ser de um naufrágio: madeiras, metais, plásticos. Tem 19 anos. Diz que a melhor coisa que aconteceu em sua vida foram os cinco anos que passou em um albergue para meninas sob risco de exploração sexual, administrado pela organização Lua Nova. Caterina chegou lá aos nove anos porque seu padrasto tentou abusar dela e de sua mãe.

No Paraguai, 19% das grávidas entre 15 e 19 anos param de estudar

Raquel Fernández, coordenadora da Lua Nova, explica que o abrigo funcionava como um modelo de atenção a longo prazo e com um orçamento anual equivalente a 740 mil reais, que funcionou até 2012. Era apoiado em parte pela Agência Espanhola de Cooperação. “Mas o Estado paraguaio não assumiu o modelo. Em vez disso, o Governo abriu um centro temporário para vítimas de tráfico. Ficou inviável para a gente continuar com o albergue”.

Soledad muda a conversa e fala das drogas. De como ingressou nelas, motivada, “não forçada”, diz, por uma amiga que usava crack. Mas quer deixar claro que as deixou depois da morte de sua mãe. E fala também de seus filhos, de quatro e dois anos. Os dois são do mesmo homem, com quem “teve que” voltar.

— Agora ele continua te maltratando?

— (Longo silêncio. Desvia o olhar). Antes, quando não tinha filhos, era pior.

— Não existe nenhuma pessoa a quem você possa recorrer, ou alguém que tenha te demonstrado carinho?

— Eu nunca recebi carinho… Quando criança éramos muitos irmãos em casa, e minha mãe era muito ocupada. Ela nunca me disse que me amava. Também nunca ouvi isso dos homens. Nunca tive um parceiro que me tratasse bem. Tudo era por dinheiro ou por droga.

— Como acha que estas circunstâncias afetam seus filhos?

— O mais velho se fixa demais no que o pai faz. Quando está com outras crianças, se orgulha dele porque seu “pai é forte e bate na mãe”. Diz assim. Quando eu tento explicar que isso não está certo, me ameaça a dizer para o pai que me bata. É como se achasse que é o pai dos dois.

— No que você pensa depois de sofrer violência?

— Quando o pai dos meus filhos me bate, acho que é porque eu mesma não me valorizo. E digo para mim mesma que resisto por meus filhos, porque não temos para onde ir. Algumas pessoas dizem que não estou fazendo bem nenhum para eles assim. E sei disso, eu sei, mas ninguém me diz: “Vem, vou abrir as portas para você”. No fim, faça o que eu fizer, é ruim.

— O que você gostaria que seus filhos pensassem de você quando crescerem?

— Que fui uma mulher valente. Que não me deixei cair. Que apesar de ter usado drogas, consegui largar. Que mesmo apanhando, fui em frente por eles.

Soledad atualmente vive com uma pequena ajuda do projeto Camsat, onde recebe cursos de cozinha, padaria e cabeleireiro. Quer conquistar seu próprio meio de subsistência.

— Imagine que nos veremos dentro de 10 anos, aqui. Licença para sonhar. O que gostaria que tivesse acontecido?

— Em 10 anos, quando te vir, quero te contar que estou feliz porque meus filhos estão na escola e eu tenho minha própria casa.

— Acha que neste ano vai haver mais inundações?

— Não sei. Não quero pensar em mais problemas – responde, agora com um pouco de pressa, antes de partir.

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