Naufrágio em Salvador: promotores questionam a fiscalização das lanchas
Ministério Público cria força-tarefa para investigar causas do acidente que matou 18 na quinta-feira Passageiros evitavam a lancha por sensação de insegurança, mas órgãos garantem validade da vistoria
"Não deviam permitir que a lancha saísse do jeito que está. Deveria ter uma fiscalização mais rígida", lamentava em Salvador o estudante Roberto Junior, que já perdeu a conta de quantas vezes viajou na Cavalo Marinho I, a embarcação que naufragou na Baía de Todos-os-Santos matando ao menos 18 pessoas na quinta-feira. Enquanto a Marinha seguia os trabalhos de busca de desaparecidos no desastre nesta sexta, Junior, de 23 anos, descrevia a lancha: "A gente não se sentia muito seguro pelo tamanho e porque ela balançava bastante, principalmente com o tempo como está agora". Nos últimos tempos, ele conta, uma fumaça preta saía do motor durante toda a viagem. "Dava náusea."
A desconfiança do estudante não é isolada. Na própria quinta-feira, pouco antes do acidente, houve uma mostra de como o barco era preterido pelos que fazem a travessia entre Salvador e Mar Grande, na Ilha de Itaparica, percurso feito por cerca de cinco mil pessoas diariamente, entre estudantes, trabalhadores e alguns turistas. Das 129 pessoas que passaram pela catraca de entrada, 13 desistiram ao descobrir que se tratava da Cavalo Marinho I, de acordo com as autoridades. Escaparam do desastre.
Os relatos dos usuários contrastam com as declarações das autoridades responsáveis pela fiscalização, que repetiram ao EL PAÍS que a Cavalo Marinho I estava regular, com vistorias e monitoramentos feitos conforme a lei. Um inquérito policial militar foi instaurado pela Marinha para determinar as causas do acidente em até 90 dias, prorrogáveis. Além disso, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) decidiu colocar o próprio controle e fiscalização na mira. Os promotores anunciaram a constituição de uma força-tarefa para apurar as circunstâncias que levaram à tragédia. “Há desorganização e falta de fiscalização. Temos um ofício de 2014, da Capitania dos Portos da Bahia, afirmando que as embarcações foram vistoriadas. Só que o que apontamos é que não se sabe se ela (a vistoria) é satisfatória e realizada numa periodicidade adequada”, apontou a promotora Joseane Suzart, titular da 5ª Promotoria da Justiça do Consumidor, nesta sexta-feira.
Desde 2007, a Promotoria baiana questiona o serviço. Naquele ano, o órgão moveu as primeiras ações civis públicas contra as empresas que faziam a travessia devido à falta de segurança. Em 2014, outro processo questionava o aumento da tarifa e a precariedade dos barcos. O ponto de partida do último procedimento, inclusive, foi uma petição assinada por cerca de 400 usuários do transporte, entre moradores de Salvador, Itaparica e Vera Cruz. Os dois processos seguem na Justiça.
A responsabilidade de fiscalizar a qualidade do serviço da travessia é, de acordo com o MP-BA, de dois agentes: a Marinha, através da Capitania dos Portos da Bahia, e a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba). Enquanto a primeira deve observar a estrutura física do barco, a segunda examina a prestação do serviço. Ao EL PAÍS, o diretor-executivo da Agerba, Eduardo Pêssoa, garantiu que a Cavalo Marinho I estava com o certificado de segurança de navegação em ordem. “A empresa sempre operou e o barco encontrava-se apto a navegar. Foi um acidente e não foi provocado pelo barco. Foi uma onda que bateu e todos os passageiros foram para um só lado. Com isso, o barco adernou”, afirmou, por telefone, antes de reforçar que as informações só serão confirmadas após a conclusão do inquérito policial militar. Mas ele não soube dizer de quando é esse certificado.
A Capitania dos Portos também não informou quando foi feita a última vistoria no barco, embora ele tenha passado por uma inspeção no domingo (20). “A embarcação foi abordada e estava com tudo regulado. Nessas inspeções, é observado se ela é conduzida por pessoas habilitadas e se o número de passageiros está dentro do limite. Mas existem vistorias periódicas de acordo com o cronograma. Isso tudo vai ser apurado no inquérito”, afirmou o capitão de fragata Flávio Almeida, da assessoria da Marinha.
A Associação dos Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab) também não foi precisa quanto à última vistoria no barco. Mesmo assim, o presidente da entidade, Jacinto Chagas, diz que a Cavalo Marinho I, que teria 15 anos de uso, teria passado pela vistoria periódica anual. “Estava tudo certinho, tudo regulamentado, tudo ok. Embarcação é diferente de carro. Ela passa por várias manutenções e tem uma durabilidade maior (do que o carro)”, minimizou.
Em nota, a dona da Cavalo Marinho I, a CL Transportes Marítimos, um das duas empresas que opera regularmente o serviço, informou que a documentação da lancha tinha validade até 2021. A empresa chamou de "vistorias intermediárias" aquelas que incluem sistema elétrico e materiais de salvatagem. Segundo a CL, essas estruturas têm validade até 2018. Um dos sócios da CL é o vice-presidente da Astramab, Lívio Galvão Filho, que não foi localizado pela reportagem. Chagas informou que o colega estava internado em um hospital de Salvador. Abalado emocionalmente, ele teria sido encaminhado à unidade de saúde após o acidente.
Capacidade
A lancha teria capacidade para 160 pessoas, de acordo com uma nota divulgada pela entidade na quinta-feira. O site da empresa CL, no entanto, diz outra coisa: lá, a Cavalo Marinho I comporta 136 passageiros. No momento do acidente, eram 120 a bordo - desses, quatro eram tripulantes.
Mas quem precisa fazer o percurso todos os dias garante que a sensação é de superlotação. “É sempre muito cheio, especialmente nesses primeiros horários. E nós não temos muita escolha aqui”, conta a estudante Vitória Gonçalves usuária do serviço. De acordo com a promotora Joseane Suzarte, na ação civil de 2014, uma das reclamações frequentes dos usuários era a lotação nas embarcações. Suzarte diz que ainda não é possível determinar, contudo, quantas pessoas costumam estar nos barcos: “Mas é inadmissível não saber quantas pessoas estão embarcadas. Não podemos olvidar que os encarregados da fiscalização devem estar a par de tudo. São pessoas humildes e trabalhadores que executam suas atividades e dependem desse serviço”.
Travessia existe desde 1950
A travessia Salvador-Mar Grande existe desde a década de 1950. No início, eram apenas pequenos barcos que tinham o objetivo de transportar moradores dos dois municípios da ilha - Itaparica e Vera Cruz - até a capital. Foi só em 2012 que o governo do estado da Bahia promoveu uma licitação para escolher as futuras concessionárias - justamente após a ação civil pública.
As vencedoras foram a CL Transportes Marítimos e a Vera Cruz Transportes Marítimos. Até então, nada de novo: eram as mesmas que já ofereciam o serviço informalmente. O modelo escolhido foi uma outorga não onerosa - ou seja, o estado não recebeu nada além do valor dos impostos já incluídos nas passagens.
Obrigatoriamente, pelo menos oito embarcações fazem o percurso - quatro de cada empresa. A depender da demanda, outros barcos podem entrar no revezamento.
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