Não abandonem o Brasil
A crise política, econômica e institucional está atuando como cortina de fumaça para ocultar um ataque frontal contra os direitos humanos
Nunca foi fácil nascer em uma favela, ser mulher, negra e lésbica no Brasil. Mas agora, está ainda mais difícil. Caso algumas propostas legislativas em curso no Congresso sejam aprovadas, veremos retrocessos em muitas de nossas conquistas sociais.
Há um ano, a comunidade internacional sentia certa admiração pelo meu país. Os Jogos Olímpicos estavam prestes a começar, o evento esportivo mais importante do mundo. No entanto, as Olimpíadas terminaram e tudo o que se esperava do Brasil durante anos se evaporou. Hoje, muitas das infraestruturas construídas, nas quais foram gastos bilhões de reais, nem sequer são usadas. O mesmo aconteceu com outras grandes obras realizadas para a Copa do Mundo de 2014. Ali onde se exibia o esplendor, hoje está o abandono.
O mundo já não olha o Brasil e, se o faz, é com desespero. Já não parece um país confiável para investir. Só aparece na agenda internacional em casos de corrupção nos quais políticos e governantes estão envolvidos. No entanto, e isso é muito grave, a crise política, econômica e institucional está agindo como uma cortina de fumaça que esconde um ataque frontal contra os direitos humanos.
A violência contra mulheres e meninas segue sendo generalizada. Ainda assim, os direitos das mulheres, como quase sempre ocorrem em tempos de crise, são os primeiros prejudicados. O aborto hoje em dia é legal no Brasil somente em casos de estupro, quando é necessário preservar a vida da mulher ou quando o feto apresenta anomalias severas. Mas há uma proposta que pretende eliminar estes pressupostos de forma a proibi-los totalmente. O resultado teria um terrível impacto sobre a vida, saúde e direitos das mulheres. Sabe-se que em praticamente 100% das famílias brasileiras há um caso de aborto. Não há como negar uma realidade tão esmagadora com uma legislação tão restrita.
Existem vários projetos para reduzir a idade penal aos 12, 14 ou 16 anos
Os grupos LGBTI também poderiam sofrer com graves retrocessos. No ano passado, o Brasil registrou o maior número de homicídios de pessoas transgênero do mundo. As autoridades não fizeram o suficiente para pôr em prática políticas que freiem esta tendência. Ao contrário, o congresso poderá apagar do mapa educativo a informação sobre identidade de gênero e orientação sexual, invisibilizando grande parte da sociedade.
Mas os ataques não acabam por aí. Em um país onde os jovens negros moradores de favelas e periferias são criminalizados pelo fato de serem jovens negros moradores de favelas, existem vários projetos para reduzir a maioridade penal para 12, 14 ou 16 anos. Em vez de proporcionar uma alternativa educativa, querem tratar jovens como adultos e prender aqueles que cometem um delito nas perigosas e superlotadas prisões do país. Nenhum congresso deveria tratar sua juventude assim.
Além disso, com os altíssimos níveis de violência que temos, há a ameaça de tornar a legislação sobre a posse de armas mais flexível. Com quase 60 mil homicídios no último ano que se tem estatísticas (2015), mais de 70% foram cometidos por armas de fogo. Ninguém em seu juízo perfeito tentaria modificar a Lei do Desarmamento, mas aqui estão tentando.
Há também os povos indígenas e comunidades quilombolas condenados historicamente à marginalização, que continuam lutando por uma vida digna. Mas cada vez parece estar mais longe. Milhares destas pessoas poderiam ter seu direito à terra limitado hoje em benefício dos interesses econômicos de grupos privados.
A comunidade internacional tem um papel chave para impedir que estes abusos aconteçam
O papel da comunidade internacional é chave para impedir que estes abusos se tornem realidade.
Os defensores e as defensoras de direitos humanos que trabalham sobre assuntos relacionados à terra, ao território e ao meio ambiente estão há décadas sofrendo ameaças, perseguições e homicídios no Brasil. Como consequência dos conflitos territoriais, em 2016 foram mortos pelo menos 58 deles assim como líderes de comunidades rurais, o que significou um aumento considerável em relação aos 47 mortos no ano anterior.
Chegamos a esse ponto e cabe elaborar uma pergunta: o que resta? Pelo menos, protestar. Mas talvez nem sequer isso; porque dentro das propostas que estão sendo consideradas, há 45 projetos legislativos que ameaçam este direito. As mudanças na legislação antiterrorista contêm definições imprecisas e muito genéricas, alinhada com a tendência europeia de leis orwellianas, que poderiam arbitrariamente processar qualquer pessoa que expresse suas opiniões publicamente ou que se manifeste de forma pacífica na rua.
Da minha parte, não vou me render. Como mulher, negra, ativista, lésbica e nascida numa favela, luto desde pequena. Não sou a única: ao meu redor, muitas pessoas trabalham para evitar que esta agenda perniciosa seja aprovada. Vamos opor uma feroz resistência pacífica para evitar que o Congresso liquide nossos direitos. Vamos denunciar todos os atropelos que apareçam. Mas não queremos fazer isso às sós. Necessitamos o apoio e a solidariedade de toda a sociedade brasileira e do resto do mundo. O papel da comunidade internacional é chave para impedir que esses abusos e para conseguir que os direitos humanos prevaleçam em um país que merece ser admirado de novo.
Jurema Werneck é Diretora Executiva da Anistia Internacional no Brasil.
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