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Coluna
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Nossa vocação para a tragédia

Com 14 milhões de desempregados, crescimento pífio do PIB e aumento da inflação, o país se torna refém de sua crise ética

Candidatos na fila para uma vaga em um supermercado.
Candidatos na fila para uma vaga em um supermercado.FERNANDO CAVALCANTI

A crise no Brasil não é política ou econômica. A crise no Brasil é ética. A mesma sociedade que saiu às ruas para apoiar o golpe liderado pelo vice-presidente, Michel Temer, contra a presidente Dilma Rousseff, eleita com mais de 54 milhões de votos, por um crime de responsabilidade cujo teor ninguém até hoje soube me explicar, se cala agora diante das indecentes manobras de Temer para se livrar da denúncia de corrupção passiva feita pela Procuradoria Geral da República (PGR), cujos indícios incluem imagens e áudios exibidos em rede nacional.

Temer conta, para permanecer no cargo, com apoio incondicional do PSDB, partido que financiou algumas das organizações que promoveram marchas contra Dilma e que havia perdido as eleições em 2014. O candidato derrotado, na época, era o senador Aécio Neves, que presidia o PSDB quando foi denunciado em maio deste ano por corrupção passiva pela PGR e afastado do cargo. Apesar de também ter aparecido em cadeia nacional pedindo dinheiro para o dono da JBS, Joesley Batista, Aécio foi reconduzido ao Senado pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), sob o argumento de que “mandato parlamentar é coisa séria e não se mexe, impunemente, em suas prerrogativas”.

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Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressurge no cenário como a grande voz da oposição “a tudo isso que está aí”, fingindo não ter nenhuma responsabilidade pela institucionalização da corrupção que ocorreu durante o seu governo. É preciso lembrar que Michel Temer, assim como Dilma Rousseff, é invenção de Lula. Com aprovação recorde de 87% dos eleitores ao final de seu mandato, em 2010, Lula jactava-se de que elegeria até um poste se quisesse – e escolheu para sucedê-lo Dilma Rousseff, que até então não havia disputado cargo algum em toda a sua vida, arrastando o medíocre deputado federal Michel Temer, do PMDB, como seu vice.

Ironicamente, Temer acabou se tornando o algoz do PT e de todos os pequenos avanços patrocinados pelo governo Lula – o desastroso mandato e meio de Dilma não acrescentou nada às conquistas ocorridas entre 2002 e 2010. Com ameaças e troca de favores, Temer ganhou a conivência de um Congresso que tem a maioria de seus parlamentares envolvidos em escândalos de corrupção (190 deputados e 48 senadores são alvo de inquérito ou ação penal no STF, segundo a revista Congresso em Foco), viabilizando reformas autoritárias – na educação, na legislação trabalhista, no sistema previdenciário – que colocam de novo o Brasil entre os países mais socialmente injustos do mundo.

Segundo o relatório “O Estado de Insegurança Alimentar no Mundo 2015”, da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), o Brasil reduziu em 82% o número de pessoas subalimentadas entre 2002 e 2014, ano em que deixou o Mapa da Fome. Os principais motivos deste êxito foram o programa de transferência de renda – por meio da Bolsa Família -, o aumento da renda mínima (crescimento real de 71,5% do salário mínimo) e a geração de 21 milhões de novos empregos.

No entanto, segundo o economista Francisco Menezes, pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e da ActionAid Brasil, em entrevista ao Nexo Jornal, há risco de o país voltar em breve ao Mapa da Fome. Um relatório que 20 entidades da sociedade civil elaboraram sobre o desempenho do Brasil no cumprimento dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, mostra que o risco se deve a uma combinação de fatores registrados a partir de 2015, como alta do desemprego, avanço da pobreza, corte de beneficiários da Bolsa Família e o congelamento dos gastos públicos por até 20 anos.

E, infelizmente, essa realidade já pode ser mensurada. Estudo da Fundação Abrinq aponta que dentre a população de zero a 14 anos, 40% se encontram em situação de pobreza – ou seja, 17,3 milhões de jovens brasileiros vivem em famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa. Os números baseiam-se na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) relativa a 2015, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Com 14 milhões de desempregados, crescimento pífio do Produto Interno Bruto (PIB) e aumento da inflação previsto após a alta dos combustíveis, o país voltou a ser refém de sua atávica vocação para a tragédia.

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