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Coluna
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Há um século, ninguém conhecia as calorias

Hoje essa unidade de energia nos parece indispensável

Martín Caparrós

Borges disse, como sempre, melhor: “Para mim, só na lenda começou Buenos Aires: / julgo-a tão eterna como a água e o ar.” Buenos Aires, aqui – outra vez – é intercambiável: o que importa é falar dessas coisas que, parece, nem começaram. Coisas banais, coisas que estão em todas as partes, coisas que parecem ter estado sempre. Mas não: tudo tem um princípio – e muitas vezes esse princípio está mais perto do que pensamos.

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Vivemos num tempo que se mede: tudo é passível de ser traduzido em cifras, magnitudes. Há cada vez mais gigas, cada vez menos euros, mais e menos calorias: a oscilação das calorias é um dos grandes temas desta época. Há 100 anos, contudo, ninguém tinha ouvido falar delas.

Cientistas as inventaram, no século XIX, para calcular em seus laboratórios o poder energético da comida. Mas elas só ficaram famosas graças a uma norte-americana que, em 1918, aproveitou, como tantas outras, que seus homens tinham ido morrer nos campos de batalha da França. As guerras costumam ser úteis dependendo da finalidade.

Lulu Hunt Peters era uma das mil médicas – mais ou menos 3% do total – que exerciam a profissão no país naqueles dias. E procurava seu lugar. Morava e trabalhava em Los Angeles, na Califórnia, em meio à nova prosperidade. Até então, num mundo onde comer era uma sorte, comer muito era pura fortuna e ser gordo era ser bem-sucedido. Mas a América mudou as coisas: comer ali já não era um milagre, e sim um costume. E engordar se tornava uma ameaça. A moda confirmou essa tendência: agora as mulheres deviam ser magras, ágeis, esbeltas.

Peters pesava 90 quilos quando decidiu aplicar a lógica aprendida no laboratório: não dar ao corpo mais energia do que ele podia consumir. Em poucos meses, perdeu 30 quilos e começou a difundir a boa nova: dava palestras em clubes femininos e publicava colunas em jornais, transformando o complexo metabolismo humano em algo compreensível para todos e – principalmente – todas. O corpo é um queimador de gordura, dizia: o truque consistia em não comer mais do que se podia gastar e, para isso, era preciso medir o que se comia. Foi aí que a unidade “caloria” tornou-se indispensável. “Em vez de dizer uma fatia de pão e um pedaço de torta, por exemplo, dirão 100 calorias de pão e 350 calorias de torta”, escreveu – e aquela palavra era tão nova que Peters explicava como deviam pronunciá-la. “Comerão calorias; deverão usar a palavra caloria de forma tão frequente quanto jarda, pé e galão.”

Manter a silhueta fina não era só bonito. Também evitava muitas doenças –dizia Peters – e era, naqueles dias de guerra, um dever patriótico: nossos jovens no front precisavam da comida. Ser gorda, afirmava, era suspeito: demonstrava que a mulher não tinha moral, que não sabia se controlar. Peters compilou suas colunas no livro Diet and Health with Key to the Calories (dieta e saúde com uma tabela de calorias), que vendeu dois milhões de exemplares e foi o primeiro grande regime de massa. Sua profecia começava a ser realizada: milhões de mulheres – e de homens – já não pensavam em termos de comida, e sim dessa unidade que, pouco antes, ninguém conhecia.

Hoje, um século depois, muitos médicos explicam que não basta medir as calorias, que cada corpo as processa de forma diferente, que alimentos com mesmo teor calórico produzem efeitos muito distintos. Mas ninguém propôs, até agora, nada mais cômodo do que esse modo de acreditar que controlamos o que comemos e, portanto, nossos corpos. As calorias, tenazes, continuam estando em nossas vidas. E parece, claro, como se sempre tivessem estado aqui.

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