No mundo pós-Trump, a revolução feminista se tingiu de vermelho
A cor está na nova série 'The Handmaid's Tale', do serviço de streaming Hulu, e em protestos feministas
Se você viu The Handmaid’s Tale, o best-seller de Margaret Atwood que se transformou na série da temporada através das mãos do serviço de streaming Hulu, certamente se perguntou por que as donzelas sempre se vestem de vermelho. A explicação é tão simples quanto inquietante: o vermelho indica que são mulheres férteis associando a cor ao sangue menstrual. Elisabeth Moss e o resto das escravas sexuais que passeiam pelas ruas cinzentas da república de Gilead deixam um impactante rastro vermelho que contrasta com o azul das respeitáveis esposas, associado à Virgem Maria.
“O vermelho é a cor da regra, do útero, das mulheres desenfreadas e pecadoras”, explicou Ane Crabtree, figurinista da série, à edição norte-americana da revista Vanity Fair. “Historicamente, o vermelho é visto como símbolo de poder, usado por reis e líderes religiosos, mas o único poder que as criadas têm é a capacidade de dar descendência. O vermelho também é associado às mulheres que cometem pecados sexuais, como a personagem de A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne”, explicam no mesmo artigo. No terrível mundo dessas mulheres reduzidas a objetos reprodutores tudo é vermelho. Inclusive o apelido da protagonista, Offred, deriva do nome do seu comandante e inclui a palavra ‘vermelho’ (red) em inglês. Casualidade?
O uniforme das criadas foi tomado nos últimos meses por vários grupos de mulheres como um símbolo de protesto. No final de junho, em Washington, várias mulheres vestidas como as donzelas de Atwood protestaram diante do Capitólio enquanto o Senado norte-americano debatia a reforma do sistema de saúde que pretende suspender o financiamento da Planned Parenthood, que oferece um sistema de saúde semelhante ao do planejamento familiar europeu. Não era a primeira vez que acontecia. Em março, um grupo de ativistas tingidas de escarlate irrompeu no plenário do Senado do Texas para protestar contra uma lei que dificultaria o aborto no Estado. Outro exemplo é o das cem mulheres de vermelho que enfrentaram há alguns dias o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, quando se dirigia para fazer um discurso para a Focus on the Family, uma organização cristã dedicada a promover valores ultraconservadores. The Handmaid’s Tale também ganhou vida no Parque do Retiro (Madri) na última edição da Feira do Livro. A Biblioteca de Mulheres encenou uma performance em que um grupo de voluntárias caminhava, com capa vermelha e touca branca, passando caixas de livros de umas a outras para simbolizar o peso da herança literária feminina e reivindicar visibilidade às autoras.
Mas, para além do uniforme das criadas, o vermelho tornou-se um símbolo feminista e cor anti-Trump. Em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, enquanto que na Espanha as mulheres foram chamados a se vestir de preto e se juntar à greve mundial, nos Estados Unidos o vermelho tornou-se o tom do movimento de protesto. A partir das redes sociais da Women’s March, que, aliás, faz toda a sua comunicação visual em vermelho, foi lançado um apelo a todas as mulheres para que durante esse dia se vestissem com essa cor em solidariedade. As ruas de cidades como Nova York foram inundadas por uma maré vermelha que se levantou contra Trump.
Como explica o The Guardian, essa cor também se tornou o uniforme das políticas em momentos-chave. Um novo símbolo do power dressing. Theresa May escolheu uma jaqueta vermelha para fazer sua primeira reunião com o presidente Trump em janeiro e Hillary Clinton usou uma roupa da mesma cor, assinada por Nina McLemore, durante sua campanha à presidência. “Para as mulheres, o vermelho transcende as ideologias políticas. Trata-se de ser uma mulher em um mundo de homens”, escreve a jornalista Morwenna Ferrier. Nos Estados Unidos, além disso, usar essa cor no movimento feminista é uma provocação contra a direita e o Partido Republicano. Melania Trump, assim como fizera Nancy Reagan, adotou-a e, por alguma razão, os bonés de Make América Great Again que tanto popularizaram Trump são da mesma cor.
Symone Sanders, que foi secretária de Bernie Sanders, deu visibilidade às mulheres negras na política com seus indefectíveis lábios pintados de vermelho. Lena Dunham lembra isso em Why Red Lipstick is Feminism’s New Calling Card (Por que o Batom Vermelho é a Nova Chamada à Ação do Feminismo), onde a diretora, atriz e ativista destrincha para a edição norte-americana da Vogue as bondades do batom carmim no movimento pela igualdade de direitos. “A revolução pintará os lábios de vermelho”, escreve Dunham enquanto lembra como sua mãe, a conhecida artista Laurie Simmons, que não tinha um estilo especialmente feminino e trabalhava em um setor dominado por homens no fim da década de 70, sempre pintava os lábios dessa cor. “À medida que o mundo balançava depois do circo surrealista da época de eleições nos Estados Unidos, era difícil não ver a conexão entre a gama completa de carmins e escarlates do Pantone e a sensação de que muitas mulheres insatisfeitas exigiam coletivamente mais direitos”, afirma a criadora de Girls.
O vermelho se junta ao espectro do onipresente violeta e do recém-chegado rosa do pussy-hat, tonalidades dominantes nas últimas manifestações feministas. A primeira é a cor internacional do movimento pela igualdade de direitos, que as sufragistas norte-americanas adotaram como uniforme na manifestação em Washington a favor da Emenda pela Igualdade de Direitos, em 1978. O rosa, segundo a criadora do boné anti-Trump, foi escolhido porque “é considerado uma cor feminina, associada com o cuidado, a compaixão e o amor. São qualidades que muitos considerariam como frágeis, mas na realidade são fortes. Se todos – pessoas de qualquer gênero – usarmos o rosa, juntos enviaremos uma poderosa mensagem em que não pedimos perdão pelo feminino e nem por exigir os direitos das mulheres”.
Agora o vermelho também ganha adeptos fora das manifestações e é visto em outros domínios relacionados com o empoderamento das mulheres. Está presente nos cartazes dos protestos – a Women’s March escolheu-o como cor de comunicação –, nas capas dos livros feministas (See Red Women’s Workshop: Feminist Posters 1974-1990; El Día Antes de la Revolución, de Ursula K. Le Guin, ou Mamá Quiero Ser Feminista, de Carmen G. de la Cueva) e até mesmo nas performances de artistas tão reivindicativos como Solange. A cantora tingiu de vermelho o show de Jimmy Fallon no fim do ano e continua apostando nessa cor na cenografia e nos figurinos de suas apresentações.
Talvez o rosa lidere as apostas como cor do capitalismo que quer seduzir as consumidoras, mas o vermelho se fortalece como símbolo do ativismo feminino em 2017. Uma nova era que deixa para trás os uniformes pretos associado às reivindicações e aos protestos (dos Panteras Negras na década de 70 às mulheres que protestam contra os feminicídios, ou os encapuzados das manifestações contra as conferências de cúpula do G-20). A sempre polêmica Camille Paglia disse recentemente que os bonés rosa anti-Trump lhe pareciam “a maior vergonha do feminismo contemporâneo” porque, em sua opinião, a cor não trazia “dignidade nem autoridade” à mulher. Não sabemos o que confabulará com o novo tom favorito do ativismo.
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