Uma noite de ‘Masterchef’ com JB, o crítico mais crítico do Brasil
O EL PAÍS assiste a um episódio do reality show gastronômico de maior sucesso do Brasil com o crítico
O primeiro a aparecer na porta entreaberta do apartamento 61, em um prédio antigo nas imediações da praça da República, em São Paulo, é Shoyu: um cachorrinho preto, da raça pug, que recentemente ficou órfão do irmão gêmeo, o Negroni. Apesar da perda familiar e da fisionomia achatada que lhe confere uma expressão algo macambúzia, ele faz festa, abanando o rabo diminuto. Logo atrás, vem seu dono, o crítico de gastronomia JB. Vestindo uma camisa azul com motivos marítimos, careca, pesando pra lá de 100 quilos e com uma mecha branca inconfundível de ponta a ponta na espessa barba preta, uma das primeiras coisas que ele diz vem no tom de uma reclamação meio brincalhona: “É a segunda vez que alguém me faz assistir o MasterChef, mesmo depois de eu ter jurado que não veria mais esse lixo”.
O JB, também conhecido como Julinho, ou Julio Bernardo, tem, assim como seu cachorro Shoyu, um jeito bem próprio que mescla um semblante soturno, mal humorado, mas, ao mesmo tempo, afável, engraçado. Ele é um dos críticos gastronômicos mais ácidos do país e, apesar de odiar o epíteto — prefere ser classificado como um cronista de comida —, é, de fato, a personificação do verbo criticar. Em outras palavras, ele não é de ponderar muito. Por exemplo, ou um prato é espetacular ou digno de ser avaliado, pura e simplesmente, como uma merda. Além disso, qualquer modismo que envolva cozinha lhe causa calafrios. Ele odeia a palavra gourmet, a multiplicação de hamburguerias pela cidade e a profusão de programas e reality shows dedicados a gastronomia.
De sua ira contra tudo que cheire a artificial, o MasterChef, reality de maior sucesso de gastronomia da televisão brasileira, claro, não escapa. Em uma terça-feira à noite, enquanto o programa se desenrola na televisão, ele, atrás do balcão de bar que tem em seu quarto, pragueja contra jurados e participantes. Erick Jacquin, Paola Carosella e Henrique Fogaça, os três chefs que comandam o programa ao lado da apresentadora Ana Paula Padrão, mereciam, segundo JB, um boneco de corda cada um, de tão previsíveis que se tornaram. Seria puxar a cordinha e eles repetiriam uma frase. No caso do Fogaça, o crítico imita com sua voz algo desafinada: “Vai sentar na graxa hoje?!”. O bordão, sempre dito aos gritos, é uma das marcas do chef que tem em uma postura hard core sua marca registrada.
As críticas de JB, contudo, são menos contra o reality show em si e mais contra a ideia de cozinha que ele passa. Estaria louco se negasse que o programa é um sucesso. A franquia do MasterChef está em 55 países do mundo, entre eles Inglaterra, Estados Unidos, China e Brasil, onde é apresentado pela Band. No formato original, cerca de 20 cozinheiros amadores disputam provas gastronômicas em busca de um prêmio de 100 mil reais, além de um curso na escola francesa Le Cordon Bleu e mais 1.000 reais em compras mensais por um ano no Carreffour. “Acho isso mais um castigo do que prêmio, mas vai saber, né?”, brinca o JB, enquanto come um torresmo. Em sua quarta temporada no formato de cozinheiros amadores, o MasterChef Brasil já exibiu também versões voltadas para profissionais e crianças. Todas tiveram grande sucesso de audiência.
Segundo a produtora Endemol, responsável pela franquia, são aproximadamente 250 milhões de telespectadores em todo o planeta. Por aqui, o programa também tem conquistado números expressivos, sendo que, ao todo, já ficou 12 horas na liderança de audiência nacional. E o sucesso transcende a TV. Na internet, quase sempre é assunto nos trend topics do Twitter. Não à toa, os vencedores das últimas duas temporadas foram anunciados primeiro na rede social e depois na televisão. Na terça-feira em questão, enquanto JB falava sobre o reality show, a audiência era a maior da temporada, alcançando a primeira colocação da TV brasileira durante 13 minutos. É apenas o sétimo episódio e a margem para crescer ainda é grande. “Há dois anos eu não diria que o programa continuaria fazendo esse sucesso”, admite o critico.
O quarto do JB é frugal e, ao mesmo tempo, único. A começar pelo bar que ele tem logo atrás da cama. Nas prateleiras, há bebidas alcoólicas para todos os gostos. No balcão, uma caveira usando um óculos estilo aviador de lentes coloridas. Fora isso, há uma cômoda, um armário, uma rede, alguns quadros e uma foto da atriz Maitê Proença na Playboy de 1996. Da sua cama – um verdadeiro ninho de edredom e lençóis –, ele reclama a esmo do reality show. Com alguma calma, contudo, é possível sistematizar suas críticas, encontrando, inclusive, eco em comentários de outros estudiosos do assunto.
O primeiro problema que ele enxerga é a “glamourização da cozinha”. Algo que, diga-se de passagem, não está presente só no MasterChef, mas em inúmeros programas de gastronomia. “A porra do dólmã [avental que se usa para cozinhar] tem inspiração militar! Militar! Quer coisa menos glamourosa que essa?”, exclama. A segunda questão é com a competição em si. “Cozinha não é corrida para ver quem é melhor, o grande desafio é ser regular. Um cara que vai a um restaurante e que sai satisfeito, quer ter certeza que ao voltar lá vai comer igual. Esse é o desafio”, diz logo antes de gritar mais um impropério contra o que acontece no reality. “Olha lá! Por que o cara está correndo na cozinha? Não pode correr na cozinha! Isso dá demissão por justa causa!”.
Em uma entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo, o historiador Carlos Alberto Doria, traduziu parte das críticas de JB em um comentário sem palavrões: “Esses programas não têm um objetivo cultural. Em um sentido, envolvem as pessoas com processos que elas ignoravam, mas não há preocupação em explicar os signos. São espetáculos e criam uma expectativa de que se tornar um chef é um caminho de ascensão social”. A própria chef jurada, Paola Carosella, já disse em mais de uma entrevista que teve dificuldades para aceitar o formato do programa, mas que hoje acredita que ele é uma boa porta de entrada para a boa cozinha na casa de milhares de brasileiros.
De volta ao quarto do JB, seu terceiro problema com o MasterChef é facilmente explicado por uma das provas a que os cozinheiros amadores são submetidos: eles devem fazer um lamen, prato de macarrão típico do Japão, em uma hora. “A gente tem 500 anos de descobrimento, enquanto o Japão tem 1000 anos só de lamen! É um absurdo dar essa prova para eles, ninguém conseguiria. Nem eu e nem os chefs. Qual é o ponto disso, então?”. A gastronomia japonesa é conhecida pelo apuro e técnica, algo que, na opinião de JB, é impossível de ser alcançado no tempo que dão aos participantes. “É desrespeitoso com a cultura, quem gosta de comida não topa isso aí”, diz logo antes de transferir sua indignação para o jurado Erick Jacquin que experimenta um dos pratos usando as mãos. “Ele tá comendo lamen com a mão! Não acredito!”, exclama tampando os olhos do cachorro, que a essa altura já está na cama com ele. “Calma, Shoyu, já tá acabando”, diz entre gargalhadas.
Se o Masterchef só é bom entretenimento — falando muito pouco de cozinha — é um debate longo, mas que ele virou assunto nacional não há dúvida. O próprio JB, que, ao final do reality, diz ironicamente estar sentido saudades dos sermões do pastor J. R. Soares, que apresenta um programa bíblico na Band antes do programa, já planeja o próximo vídeo que publicará no seu blog Edifício Tristeza, em que escreve suas críticas: uma avaliação da comida de Leonardo Young, último campeão do Masterchef. Depois que levou o prêmio de melhor cozinheiro da temporada passada, Young desenvolveu o cardápio de um motel na zona sul de São Paulo. O JB, com todo seu doce mau humor, vai lá provar.
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