São Paulo não é a capital gastronômica que dizem (mas é melhor do que muitos pensam)
Não somos a capital gastronômica do planeta, mas a oferta de restaurantes da cidade é das mais relevantes e criativas
Trinta anos atrás, para tomar vinho bom em São Paulo (e no Brasil), as alternativas eram um tanto limitadas. E, na maioria das vezes, custavam muito caro. Ou você tinha recursos e bebia Bordeaux, Champagne, Barolo, trazidos por poucas empresas especializadas (e por contrabandistas, o que era mais comum); ou se refugiava no Chianti “de palhinha”, no Château Duvalier e afins. O mercado ainda estava fechado, a produção nacional não havia se consolidado, a inflação era alta, a massa de consumidores ainda não era das mais possantes.
No âmbito de comida, guardadas as proporções, era parecido – a comparação é por minha conta e risco. Não que não houvesse gente cozinhando bem. Mas o cenário estava longe da maturidade. De um lado, tínhamos uma casta superior da restauração, com Massimo, Rubaiyat, Fasano, Ca’d’Oro, La Tambouille, Le Coq Hardy e outros (franceses, italianos e carnes, especialmente). De outro, os clássicos da cidade, com Casserole, Tatini, Castelões, Gigetto, e um contingente de restaurantes e bares mais populares. Os ditos étnicos eram menos numerosos e não era ainda a fase dos contemporâneos. Cozinha brasileira? Era comida de casa, ou de comedorias mais simples. Passava-se bem, mas com menos diversidade. Com poucos meios-tons.
Simplificações e reducionismos do colunista à parte, na semana em que São Paulo completa 463 anos, é preciso reconhecer: a evolução gastronômica da cidade, do fim da década de 80 para cá, tem sido contínua e notória. Digo isso por ter visto metade dessa trajetória como consumidor, metade como consumidor e jornalista especializado. O salto de diversificação de opções, profissionalização, oferta de produtos e aprimoramento técnico foi mesmo admirável. Ainda que tenha bastante a avançar.
Uma metrópole como Londres oferece cozinhas de 150 etnias diferentes, o dobro da capital paulista. Contudo, até pouco tempo atrás, não dispúnhamos de representantes de Camarões, do Vietnã, da Turquia, de Peru e Bolívia. Sem falar numa leva ainda nova de imigrantes, como os libaneses do eixo Brás/Pari ou os recém-chegados refugiados sírios, que aos poucos vão se instalando e servindo seus shawarmas e esfihas. E a cidade, vejam só, ainda tem um bom caminho a percorrer nas tradições regionais brasileiras e, especialmente, na sua própria – que é caipira na essência, meio italianada, algo internacionalizada.
Há certos segmentos paulistanos que, a meu ver, já produziram restaurantes e cozinheiros que seriam competitivos em qualquer grande praça internacional. Falo dos contemporâneos (a maioria deles, investigando a matéria-prima nacional); das churrascarias topo de linha; dos japoneses de elite; dos italianos de primeiro time. Da mesma forma que certas casas familiares, ligadas às colônias (japoneses, coreanos, árabes e armênios entre outros), garantem experiências gustativas – e culturais – das mais interessantes. São Paulo não é fácil, nem muito evidente: é preciso procurar as coisas em seus meandros, é preciso resistir a um certo brilho de ouro de tolo.
Puxando pelas lembranças, consultando arquivos, e resumindo uma história longa, eu lembro do tempo em que quase qualquer cozinheiro, afetando algum sotaque estranho, já era visto como um semi-gênio. Em que o risotto (a receita italiana, não o arrozão de forno) era preparado com agulhinha, pela impossibilidade de comprar as variedade arbóreo e carnaroli, de difícil importação. Um bom queijo? Só se alguém trouxesse na mala. Massas de grão-duro? Também eram para poucos, nem pensar em encontrá-las, como agora, nas gôndolas da maioria dos supermercados.
Hoje, não apenas o acesso a ingredientes importados é vasto, como o próprio produto nacional evoluiu admiravelmente. Os cozinheiros-ídolos dos jovens estudantes de gastronomia não são mais os estrangeiros, mas talentos nascidos e criados aqui – muitos deles misturando, sem crises, o local e o globalizado. Alex Atala, Rodrigo Oliveira, Mara Salles, Helena Rizzo, Jefferson e Janaína Rueda e outros têm importância fundamental nessa transição (nota importante: nomes com Laurent Suaudeau e Claude Troisgros, além de Luciano Boseggia, Erick Jacquin e vários outros, para além do talento culinário, foram essenciais na formação de profissionais no Brasil).
A recessão dos últimos três anos foi duramente sentida pelo segmento de restaurantes. Não poucos fecharam, outros tantos estão penando para se manter, vários tiveram de rever caminhos e construir novas identidades. Entretanto, o que vem surgindo dessa nova realidade é algo muito interessante: preços foram revistos, clichês foram questionados, supérfluos foram dispensados. Se no começo do século XXI, até o fim da primeira década, com consumidores mais abonados, predominava uma média restauração cara, pesada e de pouca personalidade (parecia que todos almejavam imitar o Gero, e nada mais), hoje existe mais espaço para a diferença. Para modelos de negócio mais racionais. Para uma cozinha mais autoral (ainda que simples), que privilegia a singularidade em lugar da mera repetição de pratos de “domínio público”.
No quadro atual, surgem inúmeros gradientes de pretensões e modalidades, entre o luxuoso e o trivial. E, quero crer, exemplos como A Casa do Porco, Jiquitaia, Mocotó, Tonton, Izakaya Matsu, Comedoria Gonzales, Nino Cucina, entre tantos outros, cada qual na sua seara, apontam a possibilidade de uma restauração moderna e descomplicada. Almoçar bastante bem em São Paulo, em casas de variados patamares, é algo hoje muito mais possível, com opções de excelente relação preço/qualidade (inclusive porque, para muitos comensais, a fórmula executiva entrada-prato-sobremesa é a que cabe no bolso). Assim como endereços para petiscar e beber, como o Sub-Astor, os bares do Jiquitaia, do Tuju e do Le Jazz, e os ainda novos Peppino e Câmara Fria, vêm trazendo uma camada a mais de cosmopolitismo ao mercado.
De modo análogo, iniciativas como o Fechado para Jantar e o Clandestino mostram que é possível criar alternativas de experiência gastronômica fora dos salões tradicionais, em espaços diferentes, em horários não convencionais, com linguagem personalíssima. Um mercado maduro, é importante ressaltar, inclui das redes de fast food e de casual dining à comida de rua; das casas populares aos estabelecimentos étnicos; das cozinhas de vanguarda aos decanos da cidade. É isso que cria musculatura, massa crítica de consumidores, forma mão de obra, gera expertise (e riqueza). Ainda estamos no meio do trajeto, mas andando para frente.
Para citar a gastronomia peruana, sempre mencionada como exemplo de articulação e projeção internacional, tenho uma tese que destoa um pouco do quase consenso de que a figura de um líder como Gastón Acúrio e o apoio governamental foram seus principais motores. Creio que o segredo de nossos vizinhos está essencialmente na base, no envolvimento do público enquanto consumidor e entusiasta de tradições. E numa robusta participação dos restaurantes populares na pirâmide nacional. Surgiu de baixo para cima. Eu gostaria que isso fosse reforçado em São Paulo.
São Paulo, todavia, também já é adulta o suficiente para ouvir verdades. Já pode ser informada sobre as cegonhas, sobre o coelho da páscoa... Por exemplo: não, não somos a capital gastronômica do planeta. Não, não fazemos pizza melhor do que na Itália – embora tenhamos um dos cenários mais interessantes da atualidade, com ampla diversidade de estilos e alta qualidade. Não, o sanduíche de mortadela do Mercado Municipal não é nenhuma maravilha. Mas nosso conjunto (estabelecimentos, recursos humanos, insumos) é dos mais relevantes e criativos. Embora ainda com muitos pontos a resolver. Exemplos? A insistência, em alguns segmentos, em valorizar mais o decorador do que o cozinheiro, em relegar treinamento (de cozinha e salão) a um segundo plano.
Ou de dar atenção excessiva para modismos que, salvo por um milagre, já nascem nos dando a óbvia impressão de que vão durar um verão, e olhe lá. O que não nos impede, em contrapartida, de constatar que todas as grandes cidades têm suas ondas e manias fugazes. Nova York, por exemplo, volta e meia incorre em futilidades efêmeras como o hambúrguer de lâmen e os bagels coloridos. Assim como Madri e Barcelona sofrem – como lembra o Comidista – com os sucos detox e os plânctons.
De resto, a cidade segue muito cara. Mesmo que os empresários abram suas planilhas e demonstrem que suas margens são cada vez piores, o fato é que as contas pesam no orçamento do público. Ao menos, temos conseguido escapar de um panorama mais monolítico do que o de dez anos atrás, quando a noção de valor (aquilo que se obtém pela soma que se paga) parecia preocupantemente turvada. E quando parecia não haver muito para onde correr, fora do esquema classiquinho franco-italiano, churrasco, cuisine internationale. Agora, dispomos de mais escolhas e o jogo é mais às claras.
A cena é dinâmica, com forte capacidade de reinvenção; há atores de talento, há uma plateia interessada. Falta escala, a meu ver. Deveríamos ter mais expoentes, mais endereços de qualidade à toda prova, mais cozinhas excepcionais. E falta cobrar mais, exigir mais, sempre construtivamente. Dar audiência para lugares inconsistentes, convenhamos, é como criticar textos ruins na internet e, ao mesmo tempo, postar seus links. É o público que acaba determinando o sucesso de um produto ou de um estabelecimento. Se não for de boa qualidade, não compartilhem, não estimulem. Para quem estiver por aqui no dia 25 de janeiro, divirtam-se. Comam bem no feriado.
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