Troca de dirigentes na Ancine tira o sono do setor audiovisual
Sérgio Sá Leitão, ex-RioFilme, é indicado agência, que também trocará presidente Cineastas e especialistas debatem rumos do setor e há que tema retrocessos
O Brasil é mais capaz hoje de cuidar de suas telas do que jamais foi. À margem da recessão, o audiovisual nacional vive o alívio de ocupar um alto e inédito patamar de produção, em termos quantitativos e qualitativos, alcançado à custa de muito trabalho e de políticas públicas construídas ao longo dos últimos 15 anos. De um lado, há números que comprovam a saúde do cinema nacional, como os 16,5% de participação de filmes brasileiros no mercado em 2016, segundo o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual. De outro, existe o selo de qualidade de festivais internacionais importantes, como de Roterdã (25 de janeiro a 5 de fevereiro) e o de Berlim (9 a 19 de fevereiro), que selecionaram, respectivamente, 15 e 13 títulos brasileiros só em suas edições deste ano.
Porém, o setor mantém os olhos abertos. Seus profissionais estão atentos às mudanças previstas para acontecer na Agência Nacional de Cinema, responsável, como órgão de Estado, por fomentar e regulamentar a área. Dois dirigentes da Ancine chegam ao fim de seus mandatos e serão substituídos neste começo de ano, o que inspira novidades. Em 4 de fevereiro, após quatro anos, Rosana Alcântara deixa o cargo de diretora – para o qual acaba de ser confirmado em Brasília o nome do jornalista Sérgio Sá Leitão, ex-presidente da RioFilme e ex-secretário de Cultura do Rio de Janeiro. Antes de assumir, ele tem que ser aprovado pelo Senado Federal.
Pouco depois, em maio, será a vez de Manoel Rangel, que anunciou sua saída depois de 12 anos de casa, quando conclui seu terceiro mandato como presidente à frente da instituição. A transição, sob a sombra de um contexto político delicado desde o impeachment, traz consigo preocupações em relação à solidez e à continuidade das políticas construídas a partir do Governo FHC e durante os anos da gestão Lula-Dilma. É o que opina a maioria dos profissionais escutados pelo EL PAÍS.
Para a maioria deles, o atual Governo não deve tocar em time que está ganhando – ao menos, não de mão cheia. Mas algo lhes tira o sono, e é o fato de o país está mergulhado em uma crise política e institucional ainda sem perspectivas de dissolução. Sob o comando de Rangel e também de Rosana, por sua filiação ao PC do B, a Ancine foi chamada de “bunker" do partido em uma reportagem do jornal O Globo, em que o ministro da Cultura fala sobre uma “necessária renovação”. “Não é necessariamente uma mudança de rumo. Tem algumas correções a serem feitas, uma necessidade de renovar os atores da condução da política da Ancine. É um pouco do que estamos fazendo no ministério, sem nenhuma grande ruptura”, afirmou Roberto Freire (PPS).
Alguns defendem, diante da nova fase, que apenas se observe por onde o barco vai navegar. Os mais alarmados acreditam no poder de mobilização da sociedade civil para garantir a continuidade de uma política construída a muitas mãos. E há quem pregue mudanças radicais, como mostram os depoimentos a seguir.
Eduardo Valente, curador e ex-assessor internacional da Ancine
“Vivemos em um país em que qualquer novidade pode alterar toda a lógica de funcionamento das coisas. Dito isso, acho que muitos pressupostos da atual política brasileira do audiovisual são bastante consistentes. Não só porque se trata de um setor que tem apresentado resultados, mas porque sua construção foi um longo processo pactuado com os diversos atores envolvidos – e não o desejo de um Governo. Levanta-se sempre a discussão sobre a inviabilidade financeira de certas produções, mas essa questão já foi superada em diversos países. O cinema com força de mercado e o cinema autoral convivem. Não é que o Brasil esteja inventando um sistema que não existe em nenhum lugar do mundo”.
Vânia Cattani, produtora e sócia da Bananeira Filmes
“O momento é de expectativa. O cinema comercial brasileiro está fortalecido, felizmente, mas a vida do cinema independente no país ainda é muito dura. Se houver retrocessos no setor, o impacto certamente será aí. Além de ser um momento politicamente delicado, o mercado está mudando, e a forma de assistir aos filmes também. Precisamos entender isso e ocupar de maneira inteligente todas as janelas. Agora é a hora de ver se o que conquistamos até agora é de fato uma política de Estado e não de governo. Quando o Manoel Rangel sair, saberemos”.
Marcelo Ikeda, autor do livro 'Cinema brasileiro a partir da retomada' (ed. Summus)
“O desafio é fazer com que seja uma política de Estado, não de governo. A Ancine tem desde 2012 um Plano de Diretrizes e Metas, em que analisou desafios e oportunidades e fez um planejamento para os próximos 10 anos. Vamos ver se ela consegue mantê-lo. O cinema brasileiro convive com o fantasma da descontinuidade desde o Governo Collor, que levou a produção nacional a zero. Mas estamos em um momento diferente, até porque a trajetória dos últimos 10 anos é muito notória. Um aspecto positivo até agora é a regionalização dos investimentos, que descentralizou a produção. Por outro lado, seria bom se a agência investisse mais em ações de regulação, que não envolvem concessão financeira”.
Christian de Castro, consultor e sócio da Zooks Consultoria e Comunicação
“A regionalização e a diversidade do cinema brasileiro é um dos aspectos mais positivos da atual política do audiovisual, e não acho que isso vá mudar. O que pode acontecer com a chegada de alguém como o Sérgio Sá Leitão é uma gestão mais ágil, que faça com que as linhas de estímulos automáticos, que reconhecem a capacidade de entrega das produtoras que vêm entregando, sejam de fato ágeis. Outras linhas, como as que apoiam filmes mais autorais, que circulam em festivais, não têm por que mudar. Também aposto numa interação mais forte entre a Ancine e a Secretária do Audiovisual, no MinC”.
Carlos Augusto Calil, professor e ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo
“Pessoalmente, sonho com uma virada radical na Ancine. Esse modelo que a agência imprimiu é o último estágio desenhado pelo Governo brasileiro no começo dos anos 50, lá por 1952, para um cinema estatizado, nos moldes de um país soviético. E tenho a plena convicção de que não deu certo. Chegar ao patamar de 150 filmes produzidos ao ano, que era um dos objetivos desse projeto, não deu resultado nenhum. Todo o pensamento, a meu ver, está equivocado. Por exemplo, para que serve o Funcine (Fundo Municipal de Cultura)? Para nada. Ele poderia funcionar como na França, onde as produtoras são fortalecidas com instrumentos de política pública, não os produtos”.
Marcelo Gomes, cineasta pernambucano
“Meus quatro longas-metragens como diretor [entre eles Cinema, aspirinas e urubus, que estreou em 2005 no Festival de Cannes, e Joaquim, que foi selecionado para o próximo Festival de Berlim] foram viabilizados graças aos editais da Ancine. Acho que a agência fez um trabalho impecável. O Brasil e a França são atualmente os países com as mais estabelecidas políticas de audiovisual. Hoje, existe respeito e confiança lá fora em relação ao cinema brasileiro. A visibilidade do nosso audiovisual é uma conquista do povo brasileiro. Nesse momento, em que há um Governo que não foi eleito, todos estão apreensivos. É hora da sociedade civil se organizar para defender essas conquistas e aprimorá-las”.
Julia Murat, cineasta carioca
“Acho grave que se fale da Ancine como ‘um bunker do PC do B’ e fico superpreocupada quando escuto que ‘é o momento de modificar a política’. Ao contrário de muitos, sou crítica à Ancine em alguns aspectos, mas é fato que ela fez muito pelo setor. Além disso, a agência vem mudando muito nos últimos quatro anos, apostando em diversificar o Fundo Setorial do Audiovisual, fortalecer da produção regional e criar linhas de investimento em filmes artísticos. Sou contrária à visão desenvolvimentista da indústria cinematográfica, porque a meu ver ela minimiza a cultura. É a visão do Sérgio Sá Leitão, que tem um histórico ruim com os realizadores cariocas por conta da sua gestão na RioFilme. Entrando na Ancine, ao menos ele tem a vantagem de ser do meio audiovisual. Mas discordo do uso que ele fez do dinheiro público no Rio, concedendo apoio direto a umas poucas produtoras escolhidas por ele".
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