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Como repensar a América Latina depois da vitória de Trump

No Chile, intelectuais debatem em um dos festivais latino-americanos mais importantes as consequências da chegada do magnata

Rocío Montes
Jorge Edwards (esquerda) e Javier Cercas no Festival Puerto de Ideas em Valparaíso (Chile).
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Durante três dias, entre sexta-feira e domingo passado, a cidade portuária de Valparaíso, no Chile, sediou, pelo sexto ano consecutivo, um dos mais importantes festivais culturais da América Latina: o Puerto de Ideas. O evento, inspirado no Festival della Mente de Sarzana, na Itália, reuniu nesta edição 25.000 pessoas e uma programação de 40 atividades simultâneas em que cinquenta de expositores nacionais e estrangeiros discutiram assuntos universais e cosmopolitas: o passado e o futuro de Shakespeare, os laços históricos entre a violência e a religião, Dom Quixote de la Mancha como o primeiro romance moderno e o Facebook como capitalismo afetivo. À margem das atividades formais, no entanto, um assunto cruzou a maioria dos debates públicos e privados no Puerto de Ideas: a reflexão sobre a América Latina depois da vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas.

Jon Lee Anderson e as novas pontes de diálogo

Jon Lee Anderson, jornalista norte-americano e biógrafo de Ernesto Che Guevara, afirma que o clima criado pelas recentes eleições em seu país “provavelmente desencadeará violência e provocará a conformação de uma sociedade polarizada, como não víamos desde os anos 1960”.

Sobre a situação da América Latina, uma região que conhece bem por causa de suas reportagens e crônicas para a revista New Yorker, Anderson esboça um possível caminho de diálogo com o Governo dos Estados Unidos: "O mais realista é que os líderes e associações não governamentais que se interessem em fazer uma espécie de frente comum, comecem desde já a reunir-se e ver que tipo de plataforma poderiam construir para entabular um diálogo com um personagem como aquele e com o Governo de um personagem como aquele", afirma o jornalista e escritor norte-americano.

"Mas teria que ser algo novo", precisa o autor de Crónicas de un País que ya no Existe: Libia, de Gadafi al Colapso, que fez uma palestra sobre violência, religião e política durante o festival de Puerto de Ideas. "Acredito que a OEA [Organização dos Estados Americanos] e organismos como Mercosul só vão construir pontes de diálogo destinados a manter as boas relações e tirar melhores vantagens econômicas", conclui Jon Lee Anderson.

O escritor, jornalista e roteirista de cinema cubano Leonardo Padura falou sobre o efeito Trump na ilha, uma vez que Barack Obama iniciou a normalização de relações entre os dois Governos. “Posso supor que, dentro em pouco, os cubanos verão os oito anos de Obama no poder como umas férias. Vivemos um sonho e, se antes tínhamos vivido um pesadelo, vamos voltar ao pesadelo”, indicou o autor de O Homem que Amava os Cachorros, durante sua palestra. “Não perdoaram certas frases de Obama em Cuba, nem algumas de suas atitudes. Ultimamente foi acusado de ingerência. Mas acredito que, em bem pouco tempo, todas estas ressalvas serão lidas como pecados menores, muito menores”.

Para Beatriz Sarlo, uma das intelectuais mais prestigiadas da Argentina, com a eleição de Trump “começa uma nova era”. Em sua palestra Cidades e Culturas Urbanas: Visão Periférica na Pós-modernidade do Sul da América, a escritora, jornalista e crítica literária se referiu à crise dos institutos de pesquisa. Lembrando que a percepção de que a política não representa e que os partidos entraram em crise nasceu justamente na América Latina, a argentina apontou também que “é preciso rever quanto os cidadãos estão dispostos a declarar seu voto”. “Supostamente ninguém votava em Carlos Menem. Não havia um único eleitor de Menem à vista. Em 1995, no entanto, foi reeleito”, disse Sarlo em um auditório lotado no Parque Cultural de Valparaíso.

Não existe um olhar único em relação ao momento que está começando na América Latina com a recente eleição nos Estados Unidos. Para o escritor chileno Jorge Edwards, “após a vitória de Trump é possível pensar que precisamos ser mais conscientes do que é a América Latina, porque o cara nos declarou guerra com o tal muro no México. Precisamos ter uma ideia mais clara do que somos, que pode ser unitária, mas reconhecendo as diferenças”. O ganhador Prêmio Cervantes 1999, no entanto, pede calma: “Temos que esperar. Há muitos candidatos bastante ruins que depois de se tornar presidentes não são tão ruins. E o contrário também acontece. Antes de começar a vociferar, a cautela deve se impor. Quando Lula chegou ao poder, pensava-se que ia fazer uma revolução social imediata, mas foi prudente e o fez bem”, diz Edwards, que junto ao escritor espanhol Javier Cerca debateu no fórum Cervantes e Nós.

Abandono da política

Mas enquanto alguns sugerem esperar para ver o comportamento de Trump como presidente, outros intelectuais da América Latina se mostram mais céticos. Para o chileno Agustín Squella, ganhador do Prêmio Nacional de Humanidades e Ciências Sociais, Trump é perigoso: “Representa uma ameaça, por enquanto só verbal, mas sempre se começa de algum lugar”, diz um dos pensadores mais respeitados do Chile, que debateu sobre ética com a filósofa espanhola Adela Cortina. “Acho um tanto ingênuo pensar que o Trump candidato tenha sido um e que o presidente será outro. O presidente vai tentar se parecer muito com o que foi o candidato e só o controle externo a ele, das instituições, da imprensa, da opinião pública de seu país e internacional, poderão, espero, moderá-lo um pouco”, diz Squella. Sobre a situação cultural e social da América Latina depois da vitória de Trump, teme que se repita o de sempre: “Que cada país vai continuar se coçando, confiando mais em sua criatividade verbal que em nossa imaginação política ou econômica”.

A escritora chilena Lina Meruane, residente em Nova York e autora de romances como Sangue no Olho (publicado do Brasil pela Cosac Naify), aponta que o eleitor de Trump foi muito demonizado depois dos insultos xenófobos do magnata republicano.“Talvez seja preciso pensar que há muita gente se sentindo alienada e abandonada pela política”, diz ela. “Esta eleição é um sintoma de um fracasso do sistema capitalista, porque os eleitores sentiram que a promessa americana já não lhes basta”.

Para a chilena, que participou do debate Escrever contra a Corrente, os escritores, intelectuais, pensadores e artistas latino-americanos têm a partir de agora um desafio imenso: “Pensar como superar essa forma de capitalismo e como, de fato, se constroem sociedades que incluam a todos”.

“Vamos voltar ao pesadelo”

Leonardo Padura: "Em pouco tempo, os cubanos verão os oito anos de Obama no poder como umas férias. Vivemos um sonho e, se antes tínhamos vivido um pesadelo, vamos voltar ao pesadelo".

Beatriz Sarlo: "Supostamente ninguém votava em Carlos Menem. Não havia um único eleitor de Menem à vista. Em 1995, no entanto, foi reeleito."

Jorge Edwards: "Temos que esperar. Há muitos candidatos bastante ruins que depois de se tornar presidentes não são tão ruins. E o contrário também acontece. Antes de começar a vociferar, a cautela deve se impor."

Agustín Squella: "Acho um tanto ingênuo pensar que o Trump candidato tenha sido um e que o presidente será outro. O presidente vai tentar se parecer muito com o que foi o candidato e só o controle externo a ele, das instituições, da imprensa, da opinião pública de seu país e internacional, poderão, espero, moderá-lo um pouco."

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