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Histórias trágicas por trás do protesto de milhares de mulheres na Argentina

Familiares de vítimas relatam as histórias por trás do protesto contra assassinatos de mulheres

A mobilização Nem uma menos pela quarta-feira negra na Argentina

Milhares de mulheres vestidas de preto interromperam o trabalho na Argentina por uma hora para protestar contra uma praga que não tem fim: mais de 200 delas são mortos a cada ano, vítimas de violência doméstica. Horas depois, dezenas de milhares de pessoas marcharam na chuva com guarda-chuvas e casacos em sua maioria negros em várias partes do país para fechar um dia de luta que mobiliza a Argentina há mais de um ano, mas até agora sem nenhum resultado concreto. O assassinato particularmente cruel e o estupro de Lucia Perez, de 16 anos, agitou novamente uma sociedade que não consegue acabar com a violência. A luta foi seguida em várias partes do mundo.

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“Cada menina que matam é um novo chute no peito”, diz Mónica Cid, mãe de Micaela Ortega, uma menina de 12 anos assassinada em abril passado por um homem que a ludibriou pelo Facebook fazendo-se passar por uma pessoa da sua idade. O suposto agressor, Jonathan Luna, aproveitou uma saída temporária da prisão para fugir e estava havia um ano e meio sem paradeiro conhecido quando cometeu o crime contra Micaela. Agora, ele está sob prisão preventiva aguardando o julgamento. Cid pedia a toda a sociedade argentina que saísse às ruas nesta quarta-feira negra para dizer um “basta” e evitar que novos feminicídios sejam cometidos. Mas ela reivindica também uma profunda mudança educacional e o cumprimento das leis já existentes para coibir esses crimes, que só no ano passado custaram a vida de 235 mulheres, segundo o Registro Nacional de Feminicídios.

"Se minha filha tivesse tido uma só aula de grooming (assédio sexual na Internet), talvez ainda estivesse viva”, lamenta a mãe de Micaela, em conversa por telefone, de Bahia Blanca. Os investigadores descobriram que Luna tinha vários perfis abertos no Facebook e conversava em chats com várias meninas ao mesmo tempo. Durante suas conversas com Micaela, o assassino lhe disse que era ”sua melhor amiga” e conseguiu convencê-la de que um suposto tio a levaria a sua casa. O diálogo passou despercebido aos pais dela porque não se deu pela conta oficial da menor — que era supervisionada —, mas por outra, falsa, que ela havia aberto. Cid sustenta que nesta cidade da Província de Buenos Aires, situada 650 quilômetros ao sul de Buenos Aires, há um grande desconhecimento entre as crianças e adolescentes sobre como detectar assédio sexual na Internet e denunciá-lo, e também faltam meios na Justiça para enfrentar o problema: “Há um único promotor que investiga crimes de assédio sexual na Internet e está sobrecarregado”.

Cid viu sua filha pela última vez em 23 de abril. As cinco semanas de busca tiveram o pior final: o corpo foi achado em um descampado nos arredores da cidade. Segundo a autópsia, foi estrangulada com uma camiseta e golpeada na cabeça. Não tinha sinais de ter sofrido abuso sexual. “Tentou, e como não conseguiu, matou-a”, diz a mãe de Micaela. Na casa de Luna acharam o casaco que ela usava no dia que saiu de casa e seu celular, e o juiz da causa determinou prisão preventiva.

Um feminicídio em câmera lenta

Não teve o mesmo desdobramento o caso de Catarina Carvalhes, a mãe da argentino-brasileira Suhene Carvalhes Muñoz, de 26 anos. O único suspeito na causa aberta pela morte de sua filha, Damián Loketek — que na ocasião era seu noivo — está livre. “Se fosse alguém pobre, estaria preso. Mas como tem dinheiro, fugiu para Israel. A impunidade na Argentina é tremenda”, denuncia Catarina.

O assassinato que deu origem à mobilização

A quarta-feira negra foi convocada através das redes sociais na semana passada em meio à comoção causada pelo estupro e assassinato de Lucía Pérez, uma adolescente de 16 anos. Depois de matá-la por empalamento, os supostos agressores deram-lhe banho e trocaram sua roupa para encobrir o crime. Dezenas de organizações convocaram as mulheres a realizarem uma greve de uma hora e se manifestarem à tarde nas principais cidades argentinas.

Na cidade costeira de Mar del Plata, a mão de Lucía, Marta Monedero, pediu justiça para todas as mulheres assassinadas, em declaração à emissora Vorterix Radio. "Esta marcha é por muitas coisas que acontecem. Quantas Lucías ficaram para trás e não se fez nada? Por essas tantas Lucías também se pede justiça. Para que não haja mais Lucías nem mais famílias destruídas.”

Em 18 de julho de 2014, uma sexta-feira, Suhene e Damián saíram para jantar. Haviam se conhecido nos escritórios da IBM em Buenos Aires, onde ambos trabalhavam três anos atrás, e fazia seis meses que conviviam em um apartamento do bairro nobre portenho de Belgrano. Tinham marcado o casamento para dezembro. Nessa noite, ao retornarem para casa, brigaram. Os gritos se transformaram em pancadas e em um feroz estrangulamento. Suhene conseguiu sair dali e foi denunciá-lo na delegacia, onde sua mãe e irmão a encontraram, toda machucada e sem ter recebido cuidados médicos, segundo relata a mãe.

Os golpes sofridos naquela noite se transformaram em dores intensas e cada vez mais constantes, até que em agosto foi internada em uma unidade de terapia intermediária por “trombose vascular com hidrocefalia de caráter traumático”, causada pelo espancamento. Nunca conseguiu recuperar-se e, em março de 2015, faleceu. “Nunca suspeitei de nada. Eu me separei por violência de gênero e achava que minha filha saberia detectar isso”, afirma Catarina.

A causa de Suhene está qualificada como “lesões agravadas”, no juizado de instrução, a cargo de Susana Mabel Castañera de Emiliozzi, mas a família denuncia que está paralisada. Para Catarina, existiram numerosas irregularidades na ação da polícia e da Justiça, e ela está convencida de que o ex-noivo de sua filha está livre porque a família dele pagou subornos. “A juíza me disse que iria baixar uma ordem para que não pudesse abandonar o país, mas não fez isso”, afirma.

“Com todas as garotas que são mortas, volta-se a reviver a mesma história, a mesma impotência e injustiça”, diz Catarina. Ela considera que as mulheres na Argentina precisam unir-se e trabalhar dia a dia “para educar seus filhos sem machismo”. “É preciso romper com a formação patriarcal e machista, deixar de fazer piadas que sempre humilham e depreciam a mulher para construir outra sociedade. Se tiver de ir todos os dias à praça para que não haja mais mortas, eu vou”, garante. Milhares de pessoas a acompanharam nesta quarta-feira.

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