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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

A era da antipolítica

Há explicações para a renúncia ao engajamento eleitoral em 2016. A crise econômica, associada à percepção de que candidatos mentem durante a campanha, é uma delas. A crise política é outra

Vista da Rocinha, no Rio, no domingo: ao fundo, santinhos no chão e, ao fundo, a fila de eleitores aguardando para votar no primeiro turno.
Vista da Rocinha, no Rio, no domingo: ao fundo, santinhos no chão e, ao fundo, a fila de eleitores aguardando para votar no primeiro turno.Antonio Lacerda (EFE)

Se alguém ainda tinha dúvidas sobre o tamanho do desgaste do sistema político no Brasil, o resultado das eleições municipais de 2016 parece ter sido bastante esclarecedor. Em 5 das 50 maiores cidades do país, os votos inválidos nada menos que superaram todos os válidos. E em outras 13 só estiveram abaixo do primeiro colocado. Na capital fluminense, o percentual de brancos e nulos cresceu 35% em relação a 2012. Em São Paulo, 30%.

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Isso sem contar as abstenções: no Rio de Janeiro, elas ultrapassaram os 7 dígitos e, somadas aos votos nulos e em branco, representam mais do que Crivella e Freixo, os dois primeiros colocados no 1º turno, obtiveram juntos nas urnas. A tendência foi acompanhada por outras capitais. Além de São Paulo e Rio, Aracaju, Belém, Belo Horizonte, Campo Grande, Cuiabá, Curitiba e Porto Alegre tiveram mais não-votos do que votos válidos. Em todos os casos, os índices superam consideravelmente os registrados em 2012.

Embora tenha crescido o número de jovens com 16 e 17 aptos a votar em relação ao pleito de 2014, o índice, se comparado a 2012, encolheu 17%. Em 2016, 78% dos adolescentes dessa faixa etária abdicaram do título de eleitor. Trata-se do segundo pior resultado em eleições municipais. Em 1990, na primeira disputa local depois da aprovação da Constituição que simbolizou a redemocratização, o índice de participação era o dobro do atual.

Há, sem dúvidas, explicações bem claras para a renúncia ao engajamento eleitoral em 2016. A crise econômica, associada à percepção de que candidatos mentem deliberadamente durante a campanha – vide o descompasso entre as promessas de reeleição em 2014 e a realidade do país pós-2º turno, por exemplo –, é uma delas. A crise política é outra. Se, por um lado, não é possível afirmar que a narrativa oficial de golpe foi amplamente incorporada pela população brasileira (candidatos que vincularam sua imagem às figuras de Lula e Dilma sofreram derrotas retumbantes no último domingo), por outro a estratégia da esquerda em denunciar a incoerência entre o discurso dos entusiastas do impeachment e seus currículos funcionou (multiplicaram-se rápida e eficazmente notícias e memes nas redes que desmoralizavam corruptos que bradam contra a corrupção), mas não exatamente a seu favor. O PSOL, livre das acusações de corrupção que atingem sobretudo PT e PCdoB, teve a chegada de Marcelo Freixo ao 2º turno como único grande trunfo no poder executivo.

Ao contrário do que se previu, a oposição de caciques do PSDB não desidratou a popularidade de Doria. O efeito, aliás, parece ter sido inverso

O que cresceu mesmo no Brasil foi a insatisfação com as instituições. Segundo levantamento apresentado pelo instituto Latinobarómetro no início de setembro, menos de um terço dos brasileiros afirma preferir a democracia a qualquer outra forma de governo. O último Ibope antes do impeachment atestou que 49% dos entrevistados se diziam “nada satisfeitos” com o funcionamento da democracia. Hoje o país tem o 2º maior índice de insatisfação com a vida da América Latina (à frente apenas da Venezuela) e o maior de preocupação com a perda de emprego. Só 4% acreditam que o país está avançando.

E é exatamente em conjunturas assim que o fenômeno da antipolítica encontra terreno fértil para proliferação.

Cinco anos depois de ver as tropas aliadas tomarem de assalto Berlim, Hannah Arendt definiu a política como o lugar de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos. Como sintetizou o historiador Clóvis Gruner, “rostos porque a política não é feita de abstrações, mas de corpos que falam e agem. Multiplicidades porque não se trata de homogeneizar os sujeitos políticos, mas de fazer explodir singularidades. A multiplicidade faz aparecerem as diferenças e os intervalos: a política faz-se também na reciprocidade entre os diversos, que constituem relações naqueles interstícios e intervalos que os aproximam sem, por isso, anular-lhes a diferença”.

Arendt mirava na Ágora. E talvez não fizesse ideia, naquele momento, de que as democracias representativas caminhariam em direções completamente opostas nas décadas seguintes. Porque o que se viu no Ocidente é o aprofundamento de um paradigma que, na modernidade, encurtou o espaço público para, cada vez mais, ceder lugar ao privado. Numa ponta, esse imaginário resultou no avanço de privatizações e parcerias público-privadas que fizeram valer os ideais de Estado-empresa sob a égide do neoliberalismo. Noutra, provocou uma verdadeira avalanche de privacidade no que o sociólogo Richard Sennett definiu, em 1974, como as “tiranias da intimidade”, resultado também da pressuposição de que o espaço privado, porque legítimo, verdadeiro, é moralmente superior ao público, contaminado em demasia pela teatralidade.

Hoje o país tem o 2º maior índice de insatisfação com a vida da América Latina (à frente apenas da Venezuela) e o maior de preocupação com a perda de emprego

Um dos principais sintomas da antipolítica no Brasil contemporâneo reside no que James Hunter chamou de “guerras culturais”. E, embora a relação entre moral e política não seja exatamente uma novidade, afinal no século XIX o discurso político parecia instrumentalizar o moral, agora o que se vê é o inverso. A tragicômica votação da admissibilidade do impeachment pela Câmara dos Deputados evidenciou bastante o movimento, que não por acaso é de dentro para fora: pela esposa, pelos filhos, pela convicção religiosa. Nada de rostos, intervalos, multiplicidades ou, que dirá, diferenças.

O “fenômeno Doria” em São Paulo não é, portanto, um acidente de percurso. Em que pesem os inúmeros motivos que levaram Fernando Haddad à derrota, João Doria Jr. cresceu impulsionado tanto pelo apadrinhamento do governador Geraldo Alckmin, que, de olho em 2018, costurou todas as alianças possíveis para lhe garantir o maior tempo de TV, quanto pela recusa à alcunha de político. “Não sou político, sou gestor”, Doria repete ainda hoje à exaustão.

Doria também mobiliza na medida em que reproduz aqui algo que no mundo se define como a “política pós-fato”, que parece ter Trump como a maior referência. Quer dizer, pouco importa se o discurso está minimamente ancorado na realidade. A intenção é lançar a ideia e, a partir daí, ganhar adeptos. Durante a campanha, o tucano chegou a prometer a extinção de secretarias municipais que sequer existem.

Propostas mesmo, quase nada. Além do pacote anunciado de privatizações e concessões de áreas e serviços públicos, uma das principais bandeiras de Doria foi o aumento do limite de velocidade nas marginais da capital. Ainda que nenhum estudo subsidie a decisão e que a redução imposta por Haddad tenha sabidamente reduzido o número de mortes, muita gente comemorou. A imagem que marcou sua campanha é a da pose com os dedos indicador e médio apontando para o lado, em alusão ao slogan “Acelera, São Paulo”.

João Doria, eleito prefeito da capital paulista no primeiro turno, fazendo o gesto símbolo do slogan de sua campanha: "Acelera, São Paulo".
João Doria, eleito prefeito da capital paulista no primeiro turno, fazendo o gesto símbolo do slogan de sua campanha: "Acelera, São Paulo".REUTERS

Ao contrário do que se previu, a oposição escancarada que fizeram os velhos caciques do PSDB-SP a Doria não desidratou a popularidade do milionário. O efeito, aliás, parece ter sido inverso. É como se houvesse algo de verdadeiro na candidatura de alguém rejeitado pelo próprio partido.

Essa não é, evidentemente, a primeira vez que políticos usam a rejeição à política para legitimar ações e desqualificar desafetos. A própria presidenta Dilma o fez diante da greve de caminhoneiros. Geraldo Alckmin usou e abusou do recurso frente às ocupações de escolas estaduais e à greve de professores.

Não é por acaso, portanto, que o governo insista tanto no anúncio de que Temer não concorrerá à presidência em 2018. A ideia é flertar com a rejeição crescente do brasileiro à política para tentar retirar a própria popularidade do volume morto e emplacar uma improvável legitimidade na condução da política econômica, vendida como “técnica”, em oposição à anterior, “ideológica” e com fins eleitoreiros.

A mesma estratégia discursiva seguem os ministros. José Serra, das Relações Exteriores, quer um perfil menos político para o Itamaraty. Marcelo Calero, da Cultura, insiste desde a posse no “desaparelhamento” da pasta. A narrativa não se sustenta – um levantamento do TCU apontou que o  3º partido com mais cargos comissionados na última gestão federal petista era o PSDB –, mas tem plateia e, por isso, continua sendo amplamente difundida.

Resta saber até quando essa velha política que tem vergonha de ser política vai continuar enganando como se fosse, de fato, uma alternativa ao modelo institucional bravamente contestado em 2013 e minado pelo que descortinaram as investigações da Operação Lava-Jato.

Na Itália dos anos 1990, a Operação Mãos Limpas tentou colocar fim num esquema que encontrou abrigo confortável em instituições milimetricamente forjadas para conviverem em harmonia e não permitirem a ascensão de uma nova experiência autoritária depois de Mussolini, mas acabou projetando demagogos de carreira como Silvio Berlusconi.

Resta saber até quando essa velha política que tem vergonha de ser política vai continuar enganando como se fosse, de fato, uma alternativa 

Por apenas 0,6% dos votos Norbert Hofer não alçou a extrema direita ao poder em maio na Áustria, um dos países com os mais altos índices de percepção de corrupção na União Europeia. Acabou batido por Alexander Van der Bellen, candidato independente que interrompeu um ciclo que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, alternava SPÖ e ÖVP no comando do país. Ainda que distantes ideologicamente, representam dois lados de uma mesma moeda. Fenômeno semelhante assistiram os norte-americanos com as candidaturas de Trump e Sanders. No Brasil, ele também impulsionou alguns discretos avanços de candidaturas do PSOL no Legislativo.

E é esse clamor por uma legitimidade que tem projetado quadros bem mais radicais à direita da antipolítica nacional.

Jair Bolsonaro, por exemplo, mais do que dobrou as intenções de voto nas pesquisas desde o aprofundamento da crise e emplacou um filho atrás do outro nos espaços de poder entre Rio e São Paulo. A despeito das expectativas de progressistas, os processos movidos pelo Ministério Público Federal e pelo Conselho de Ética contra o congressista fluminense por incitação ao estupro e à tortura só tendem a fortalecê-lo diante de seu nicho, que concentra saudosistas da ditadura militar e homofóbicos assumidos, passando por neointegralistas e outras ordens reacionárias do cenário nacional.

Assumir posições autoritárias é, para Bolsonaro, estratégia de cooptação de indignados com o quadro de teatralidade característico da vida pública. Pastor Everaldo, líder nacional do PSC, já tem um acordo com o deputado. Se chegar a 2018 com 10% nas pesquisas, Bolsonaro será o candidato do partido à presidência da república.

Não tem outro jeito: ou a política se reinventa, ou não vai sobrar rosto nenhum para contar essa história.

Murilo Cleto é historiador e professor. É um dos autores e organizadores do livro Por que gritamos Golpe? (Editora Boitempo, 2016).

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