Teatro para sair da caixinha
Mirada leva ao litoral paulista 42 obras ibero-americanas que apostam no atrevimento do teatro
Quanto mais a vida se mostra cinzenta, menos o teatro quer se parecer a ela e mais é capaz de exacerbar a realidade e de sacudir o espectador com sua força artística. A reflexão é de Danilo Santos Miranda, diretor do Sesc-SP – que abriga no litoral paulista, até domingo, dia 18, a quarta edição de um festival de teatro de grande destaque no Brasil hoje, o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos. Para Miranda, um dos curadores do evento, vivemos um momento de crise exacerbada – e como remédio o mundo precisa, no mínimo, de uma boa dose teatral. “A arte é contundente quando sai da caixinha”, diz ele ao comentar o Mirada deste ano – em que 12 países da América ibérica apresentam obras atrevidas e que mesclam linguagens.
São 43 peças encenadas em diversos espaços da cidade e, para os interessados, uma oportunidade rara de chacoalhar conceitos. Do total, 15 são brasileiras, oito vindas da Espanha (a homenageada deste ano) e as demais importadas de países como México, Colômbia, Chile e de outros lugares próximos, ainda que vistos aqui com certa distância. Quem mergulhar na programação – em que as performances artísticas são o grande destaque ao lado de obras que combinam o teatro ao cinema, à dança e às artes plásticas – tem boas chances de sair, no mínimo, diferente. É o que acredita – e espera – Miranda.
Mas, com sorte, ele não será o único. O espectador sente a chachoalhada, por exemplo, em uma das montagens mais criativas do evento: Psico/Embutidos – Carnicería Escénica, dirigida pelo mexicano Richard Viqueira em parceria com o grupo teatral mexicano mais antigo, a Compañía Titular de Teatro de la Universidad Veracruzana. Nela – radicalmente interativa – sai de cena o palco e entra uma complexa instalação cênica de oito metros armada na área de convivência do Sesc de Santos.
De fora, a estrutura se parece a um parque infantil, ao estilo trepa-trepa, formado de miniestações interconectadas por escadas e tubos e que o público deverá percorrer. De dentro, imita o sistema digestivo de um organismo vivo: tal qual um alimento, o espectador entra pela boca e é expulso pelo reto, transformando-se um pouco a cada parada no caminho – onde salsichas e linguiças humanizadas esperam por ele com suas encenações. Completamente nus, os personagens são representados por 19 atores e atrizes de 20 a 80 anos, interligados por dilemas relacionados à vida e ao amor, à morte e à degradação da carne – às vezes lúdicos, sempre profundos.
Foi um sucesso de público no México, onde o diretor conta que muitos se animaram a ficar pelados também, intensificando “uma troca bastante fluída e natural”. “As várias encenações da obra fizeram com que ela fosse mudando de uma maneira que nunca planejamos. Ela exige uma postura aberta do espectador ao ingressar, da nudez à reflexão que é proposta, e que produz nele uma transformação mínima”, afirmou Viqueira.
Galos de tênis e outras performances
Ligado por inspiração e através de seus curadores a grandes festivais ibero-americanos, como o de Cádis, no sul da Espanha, e o de Bogotá, na Colômbia, o Mirada tomou para si a missão de apresentar aos brasileiros as novas tendências do teatro contemporâneo produzido na região. Por isso, dispensa as abordagens mais clássicas e abraça as radicais, como a que propõe Rodrigo García, diretor argentino radicado na Espanha, em outra montagem bastante comentada nesta edição do evento, 4.
Toda fragmentada, a produção espanhola instiga pensamentos contra a consumo de massa, trazendo performances que poderiam facilmente fazer parte da atual 32a edição da Bienal de Artes de São Paulo. Em uma delas, galos adestrados aparecem no palco vestindo tênis infantis e, como num balé estranho, são manipulados pelos quatro atores que motivaram o título da peça. Em outra, um ator joga tênis contra uma parede aonde se projeta em vídeo uma genitália feminina, aos sons dos gritos da tenista Sharapova. Em uma terceira, a única atriz do grupo entrevista um convidado da plateia sobre preferências sexuais – ambos, como produtos, embalados em sacos de dormir.
Fundador do La Carnicería Teatro, García – para quem "é tarefa dos espectadores detectar o essencial em uma obra teatral" – estava no teatro na segunda encenação de 4 neste Mirada, quando algumas pessoas da plateia se manifestaram contra a presença dos galos aos gritos de "Isso não é teatro. É maus tratos de animais" e uma mulher tentou resgatá-los do palco. “Tem um pouco de tensão no ar hoje, não?”, disse o diretor ao interagir com plateia do Sesc – que terminou multado em 2.000 reais pela prefeitura da cidade, graças a uma lei de 2004 que proíbe o uso de animais domésticos ou selvagens em espetáculos.
Menos polêmicas ainda que bem distantes de qualquer naturalismo são peças críticas como a da catalã Angélica Lidell, O que farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza). É um trabalho que estreou no Festival de Teatro d’Avignon e que parte conceitualmente de dois crimes: do assassinato cometido pelo japonês Issei Sagawa, que declarou ter esquartejado a namorada por amor em 1981, e dos atos terroristas que aconteceram e de atos terroristas que deixaram mortos na França em 2015. Radicada em Madri e “angustiada com as distâncias entre palavra e ação”, Lidell é considerada um dos talentos do teatro espanhol contemporâneo.
Do Brasil também não faltam talentos, já que o Mirada se preocupa também em ser uma vitrine do teatro nacional para os estrangeiros. Entre as montagens brasileiras, estão obras de grandes dramaturgos como Antunes Filho (Blanche) e de nomes de destaque na cena atual, como Felipe Hirsch. A segunda parte de sua obra A Tragédia Latino-Americana e a Comédia Latino-Americana, que investiga as contradições da sociedade a partir da literatura da região, é uma das que estreiam no festival – para o qual, não restam suspeitas, teatro se faz com atrevimento.
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