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Censura e protestos aumentam expectativa sobre filme ‘Aquarius’

Cineastas retiram seus filmes da disputa do Brasil no Oscar 2017 em apoio a Kleber Mendonça

Cena de 'Aquarius' com Sônia Braga.
Cena de 'Aquarius' com Sônia Braga.Divulgação

Vem aí um filme brasileiro que a maioria ainda não viu, mas do qual já ouviu falar – e muito. Aquarius, novo longa-metragem do diretor pernambucano Kleber Mendonça, chega às salas de cinema só em 1 de setembro, mas anda passeando por redes sociais e rodas de debate desde que estreou no prestigioso Festival de Cinema de Cannes em maio deste ano. O filme, que disputou a Palma de Ouro ao lado de pesos pesados do cinema mundial, como Pedro Almodóvar e Paul Verhoeven, era para a imprensa um dos queridinhos da festa. Até que sua equipe foi fotografada no tapete vermelho da mostra francesa com cartazes contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff, e as águas desse mar foram divididas. Uma polêmica se armou imediatamente no Brasil e ela se arrasta até o presente.

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O capítulo mais recente foi visto esta semana, quando a obra foi proibida para menores de 18 anos, o que foi encarado no meio como uma represália do Governo atual e gerou uma onda de solidariedade no mundo cinematográfico. Três cineastas retiraram seus filmes da disputa à candidatura brasileira ao Oscar estrangeiro de 2017, uma maneira de marcar posição e de favorecer o filme de Kleber Mendonça que também está nessa disputa.

Tudo começou logo depois de Cannes, com uma anticampanha em redes sociais. Nela, internautas e jornalistas identificados com movimentos de direita no Brasil defendiam que o longa-metragem, no qual Sônia Braga interpreta a última moradora de um edifício em Recife prestes a ser demolido, fosse boicotado pelos telespectadores. Na ocasião, um dos rostos visíveis que se posicionaram radicalmente contra a iniciativa de Kleber e equipe foi o crítico paulista Marcos Petrucelli, comentarista da rádio CBN e editor do site e-Pipoca: "Vergonha é o mínimo que se pode dizer", escreveu Petrucelli sobre o protesto em Cannes, ironizando depois a falta de prêmios para o filme na competição. Ele voltou à carga contra o filme algumas vezes.

Alguns meses mais tarde, no início de agosto, as colocações de Petrucelli a Kleber e à “esquerda cinematográfica”, como escreveu o jornalista na Folha de S. Paulo, criaram mais do que um incômodo aos alvos de suas provocações. Foi quando a Secretaria do Audiovisual (SAV), ligada ao Ministério da Cultura, indicou o nome do crítico, entre nove especialistas, para compor a comissão responsável por avaliar os candidatos brasileiros que almejam disputar o Oscar – entre eles, Aquarius. Petrucelli afirmou publicamente que não tem "nada contra o filme", mas contra as posições políticas do diretor, e alega que o trabalho do comitê respeita critérios técnicos, além de ser resultado de um debate entre todos seus integrantes. Ainda assim, Mendonça e aliados suspeitam do processo, como expôs o pernambucano em uma carta aberta publicada na imprensa.

Equipe do filme exibe cartazes contra o processo de impeachment no Brasil.
Equipe do filme exibe cartazes contra o processo de impeachment no Brasil.Foc Kan©

Diante do constrangimento instalado ao redor da SaV, vários profissionais de cinema passaram a questionar abertamente a imparcialidade da comissão. Os cineastas Aly Muritiba, Gabriel Mascaro e Anna Muylaert retiraram então seus filmes da disputa, declarando apoio total a Aquarius. "Não me sinto confortável em participar de um processo seletivo de interesse público que tem demonstrado imparcialidade questionável”, disse Gabriel Mascaro, diretor de Boi Neon, à Folha de S. Paulo. Anna Muylaert, de Mãe só há uma, declarou ao mesmo jornal: “Achamos que este é o ano de Aquarius. É o filme certo”. Já Aly Muritiba, diretor de Para minha amada morta, se posicionou no Facebook: "Nós da equipe do filme Para minha amada morta não reconhecemos a legitimidade da comissão constituída pela SaV para escolher o representante brasileiro na disputa do Oscar 2017, portanto, nos retiramos do pleito. Em tempos de exceção é preciso tomar posição clara". A lista final dos postulantes ao Oscar (que sai em 31 de agosto) ainda pode sofrer novas baixas.

Por fim, dois membros do comitê cederam às pressões e anunciaram seu desligamento da comissão. O diretor e produtor mineiro Guilherme Fiúza Zenha, optou por deixar o grupo, anunciando no Facebook seu desligamento “por motivos pessoais”. O mesmo fez a atriz Ingra Lyberato, que mencionou no Instragram que havia começado a "sofrer pela retirada de alguns filmes preciosos".

O imbróglio cresceu quando, a poucos dias da estreia comercial, o longa recebeu do Ministério da Justiça a classificação indicativa de não recomendado para menores de 18 anos – dada de acordo com a regra vigente a obras com cenas explícitas de sexo e de violência, caso que não se aplica a Aquarius mais do que a casos semelhantes classificados anteriormente em 16 anos. A obra tem algumas cenas de nudez e um trecho de 13 segundos que mostra sexo grupal. A notícia surpreendeu muita gente e foi interpretada como um ato de repreensão do Governo interino, já que dificulta a circulação do filme. “Surpresos com a censura ‘18 anos’ dada a Aquarius pelo Ministério da Justiça. É incrível ver que ele está se tornando o filme mais controvertido do ano, aparentemente por celebrar a vida de maneira generosa, por ter um ponto de vista social e político forte e ainda trazer como personagem principal essa coisa assustadora para muita gente que é uma mulher forte, que não leva desaforo para casa”, diz um post oficial no Facebook.

O filme de Mendonça tem seguido uma estratégia de lançamento pouco usual, sem tantas exibições prévias para a imprensa, apenas pré-estreias pontuais em cidades como Recife (onde foi filmado) e em festivais próximos do público como o de Gramado, onde foi exibido nesta sexta, 26 de agosto. Na sessão especial do filme em um novo complexo de salas de Niterói (RJ), em 22 de agosto, Sônia Braga se manifestou sobre a decisão da Justiça, da qual a distribuidora do filme no Brasil, a Vitrine Filmes, recorreu sem sucesso. “Um filme como este não justifica essa classificação. Meu grande interesse no Brasil hoje é a juventude, que tem uma opinião importante. Não permitir que essas pessoas tenham acesso a essa cultura significa cercear essa liberdade”, afirmou a atriz à revista Época.

Jornais franceses como o Liberation chamaram a atenção para o cerceamento do Governo brasileiro a Aquarius pós-Cannes, uma leitura endossada no Brasil por reconhecidos críticos de cinema do país. “Esta é a cena proibida para menores de 18 anos?”, questionou Luiz Zanin no Estado de S. Paulo, em referência à imagem do tapete vermelho em Cannes. Já Inácio Araújo opina na Folha de S. Paulo: “Com um pouco de diplomacia, outro tanto de inteligência e um sentido mínimo de grandeza, o novo governo estenderia um tapete vermelho a este filme, abriria caminhos, poria os órgãos de comércio exterior para funcionar a favor não propriamente do filme, mas daquilo que até mesmo sua oposição ao novo governo poderia provar, de aceitação da pluralidade e, mais ainda, da alteridade. Não era o Temer, afinal, que supôs algum dia unir o país?”.

Enquanto isso, fora do Brasil, aparentemente protestos pacíficos como o de Aquarius (que já tem distribuição garantida em mais de 60 países) não constrangeram ninguém – e podem ter inclusive servido de fonte de inspiração. Nesta quarta-feira, 24 de agosto, em meio à reta final do impeachment no Senado, um grupo de artistas estrangeiros se posicionou em uma carta contra o Governo interino de Michel Temer e o afastamento de Dilma Rousseff. Dele fazem parte o cineasta Oliver Stone, a atriz Susan Sarandon, o ator Viggo Mortensen, o linguista Noam Chomsky e a estilista Viviane Westwood, entre outros profissionais da cultura e das artes de diferentes países. "Nos solidarizamos com nossos colegas artistas e com todos aqueles que lutam por democracia e justiça em todo o Brasil", diz o texto, redigido em inglês e português.

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