_
_
_
_
_

Muitas vidas cabem em Elke Maravilha

Morreu nesta terça-feira uma das figuras mais libertárias e emblemáticas do showbiz brasileiro

Elke Maravilha: “Custei que entendessem que meu visual não é fantasia".
Elke Maravilha: “Custei que entendessem que meu visual não é fantasia".Divulgação

Morreu na madrugada desta terça-feira Elke Maravilha, uma das figuras mais libertárias e emblemáticas do showbiz brasileiro, aos 71 anos. A modelo, atriz e cantora, que estava internada há dois meses em um hospital do Rio de Janeiro e sofria de diabetes, não resistiu a uma cirurgia feita em função de uma úlcera e teve falência múltipla de órgãos. Na página da artista no Facebook foi publicada uma mensagem de despedida: “Avisamos que nossa Elke já não está por aqui, conosco. Como ela mesma dizia, foi brincar de outra coisa. Que todos os deuses, que ela tanto amava, estejam com ela nessa viagem”.

Mais informações
Leonard Cohen se despede de Marianne
Tunga se foi, mas seu universo permanece
Adeus à voz e aos paetês do eterno Cauby Peixoto

Conhecida pelo visual radical, de imensas perucas, maquiagem carregada e vários acessórios, Elke Georgievna Grunnupp nasceu em São Petersburgo na Rússia, em 1945. Veio ao Brasil aos seis anos com a família, fugindo das perseguições políticas do stalinismo, e viveu anos em Minas Gerais antes de se instalar Rio de Janeiro, onde construiu a carreira artística. Um outro ícone da vida social carioca, o colunista espanhol Daniel Más (1944-1989), foi quem lhe deu o apelido de “Maravilha” – tradução perfeita da explosão de cores e energia de alguém que viveu a vida intensamente.

Aos 24 anos, depois de trabalhar como secretária, bibliotecária, bancária, professora e tradutora, falando nove idiomas, Elke se tornou modelo e manequim. Exótica e performática, foi um dos rostos mais importantes do Brasil nos anos 60 e 70, saindo nas capas de quase todas as revistas da época. Antes de se lançar na TV, desfilou para a amiga Zuzu Angel, um dos maiores ícones da moda brasileira, cujo filho ela defendeu ante a ditadura militar, que o desapareceu e assassinou. Passou seis dias presa por desacato às autoridades e teve a cidadania brasileira cassada. Nunca mais a revogou.

Elke nos anos 70.
Elke nos anos 70.

Em 1972, foi sua estreia na televisão como jurada do programa do Chacrinha, que apadrinhou sua carreira e a quem ela tinha como um pai. "Painho era a melhor pessoa do mundo. Era um gênio. Era uma pessoa boníssima, libertaria e libertadora. Ele não tinha preconceito com nada”, declarou. No cinema, atuou em 28 filmes, entre eles Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, e Pixote, a lei do mais fraco (1981), de Hector Babenco. Como cantora, ficou famosa interpretando Beijinho doce, canção composta por João Alves dos Santos que celebra sua terra adotiva, Minas Gerais.

Também fez novelas e peças de teatro – e até o último momento. Antes de ser internada, Elke vinha se apresentando pelo país com o espetáculo Elke canta e conta, em que falava de passagens de sua vida desde a infância na Rússia, os casamentos e a vida como modelo e apresentadora.

Defensora dos homossexuais e tida como mãe das drag queens, Elke Maravilha costumava dizer que nunca foi mulher, preferia “ser pessoa”. “Nunca permiti ser chamada de mulher. Na minha geração você não podia trepar sem casar. Eu nunca fui mulher, então não tive esse problema, trepei e pronto. Só fazem com você o que você permite”. Casou-se oito vezes e relevou publicamente ter realizado três abortos. “Sempre soube que não tinha talento para ser mãe e não saberia educar uma criança”.

Elke retratada pelo fotógrafo norte-americano David Zingg.
Elke retratada pelo fotógrafo norte-americano David Zingg.

Nunca deixou de sofrer críticas por sua aparência, que, segundo ela, era um reflexo de sua personalidade. “Custei que eles entendessem que não é fantasia. É assim que eu sou e ponto”, afirmou em um programa de TV. Mas também nunca deixou de ser quem era: “Talvez, se meu estilo não fosse verdadeiramente minha realidade interior, eu teria voltado atrás. Mas sabia que nunca iria recuar. Eu nunca quis agredir ninguém! O que eu quero é brincar, me mostrar, me comunicar”.

Sobre a morte, dizia estar preparada. “Quando pequena, meu pai todo dia me falava: ‘Não se esqueça que eu vou morrer, sua mãe vai morrer e você vai morrer’. E ele me levava a todos os velórios, não me poupava de nada. Me fazia ver tudo. Me ensinou a ser trágica, mas nunca a ser dramática. Nunca!", disse ao jornal Extra, um ano antes de se despedir com a coragem de sempre.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_