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‘Bamboleo’: um fantástico embuste

Os Gipsy Kings deram uma aula magna de como vender a rumba flamenca ao mundo inteiro

Diego A. Manrique
O grupo Gipsy Kings, em uma foto sem data.
O grupo Gipsy Kings, em uma foto sem data.

Sejamos sinceros: na Espanha os Gipsy Kings sempre produziram vergonha nas pessoas. E vergonha própria. Mas há ressalvas: são franceses os que exportaram esse prodigioso consolo que chamamos de rumba catalã. Alguns ciganos de Montpellier e Arles cujo vocalista nem era capaz de falar castelhano. E cantava daquela maneira, aprendendo as letras foneticamente, com feliz ignorância da gramática.

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Duro e enfadonho. O mundinho flamenco espanhol foi incapaz de articular palavra: uns primos gringos que se apropriavam de tudo. Daqui sempre se olhou para os flamencos do sul da França com condescendência. Costumavam ser instrumentistas como Manitas de Plata, especialistas em floreios e mestres em ludibriar o jet set da Côte d'Azur, nada que eclipsasse os criadores da arte flamenca mais genuína. Mas ocorre que esses Gipsy Kings, alguns aparentados do citado Manitas, cantavam. E se apropriavam sem rubor de achados alheios.

Vejam Bamboleo. É um enxerto de duas canções sul-americanas: Caballo Viejo, do venezuelano Simón Díaz, datada de 1980, e Bamboleo, samba do carioca André de Sá Filho, gravado por Carmen Miranda em 1931. No entanto, no disco dos Gipsy Kings aparecia assinada pelos três chefes do grupo: Nicolás Reyes, Tonino Baliardo e Chico Bouchikhi

Outras gravações do grupo plagiavam autores espanhóis. A Sociedade Geral de Autores e Editores fez alguma coisa? Sai, Sai: nada de mexer em vespeiros. Claro: dispensaram o golpe do Gipsy Kings em seu livro de referência, o monumental Sólo Éxitos: Año a Año 1959-2002 (somente sucessos: ano a ano 1959-2002). O único Bamboleo ali presente é a versão xerocada do malaguenho Tijeritas, gravada para a multinacional Epic.

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Ocorre que o primeiro álbum internacional dos Gipsy Kings -o que incluía Bamboleo e Djobi, Djoba- saiu em uma modesta gravadora de Barcelona, especializada em dance music. Certamente não houve investimento publicitário e isso explica que ainda haja ouvintes espanhóis convencidos de que Bamboleo é propriedade de Celia Cruz ou Julio Iglesias, dois dos infinitos artistas que cantaram a música.

Tenho que admitir, engolindo todos os preconceitos, que fiquei encantado com esse disco dos Gipsy Kings. E outros que saíram na mesma onda: a estreia de Roé, que incluía tangos de Camarón (Como el Agua) tocados por una banda que tinha David Gilmour. Sim, vocês leram bem: o guitarrista de Pink Floyd.

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Contudo, não entendi o truque até poder vê-los ao vivo. Na Wembley Arena, diante de 12.000 londrinos, e foi impressionante: um show perfeitamente coreografado, com todos os Gipsy Kings em fila e rasgando simultaneamente os sons nos momentos-chave. Atrás, pouco visível, um grupo de rock que reproduzia fielmente os arranjos do disco.

Nicolás Reyes, o principal vocalista, até lançava tiradas em perfeito castelhano -"e estas bulerías vão para todos os ciganos do mundo"-, que os gringos aplaudiam com fervor. Depois, nos bastidores, Nico confessou que não podia manter uma conversa em espanhol. Ambos nos sentimos muito desconfortáveis.

Da minha parte, sobreveio um prurido nacionalista. A frustração de que ninguém na Espanha tivesse sido capaz de conceber semelhante jogada: rumba for export. Importa muito? Acho que sim. Trinta anos depois, nos cinco continentes, se surge a palavra "flamenco", imediatamente te respondem com "The Gipsy Kings!". E não vale a pena tentar lhes explicar o erro.

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