O maquiador de defuntos
Javier Chávez deseja reviver a expressão da pessoa morta, mas não fala com ninguém da família nem vê fotos

"Você vai tocá-lo?", me pergunta Javier Chávez, que maquia cadáveres. Melhor não. Chega um ataúde sem o tampo. Dentro há um corpo envolto em lençóis de hospital amarrotados. Eram os lençóis de vivo e parece a primeira coisa que pegaram. Retiram o corpo dentre vários, agarrando-o pelo tecido.
"Tire a camisola dele", diz Chávez. Resta um cadáver amarelo com uma fralda. É final de manhã: "Deve ter morrido às 6". Está depositado em uma mesa de operação com uma pequena plataforma de metal que deixa um canal por baixo: por ali escorrem os líquidos de limpeza -ou outros- até o esgoto.
"Tem uma certa rigidez", diz Chávez. Dobra o cotovelo dele, os pulsos, os dedos. Os barulhinhos. Prossegue com o desinfetante em todos os orifícios do rosto e nas axilas e partes íntimas, sem tocá-los. Ergue as pestanas dele e de repente olhos azuis olham para cima. O movimento de um braço e o olho aberto repentino de um morto são experiências, para mim, novas.
"Como você chama a função em que trabalha?", pergunto a Chávez. "Depende se estou numa discoteca", brinca. E explica por etapas: "Para a anatomia", começa. Como?, lhe perguntam: "Com as pessoas", acrescenta. Continuam sem entendê-lo. "Com as pessoas que andam", insiste Chávez. No final, usa o termo científico: "Eu me dedico à tanatopraxia". Quando ele esclarece, lhe dizem "tudo bem, tudo bem". Mas, em seguida, querem saber mais.
O corpo chega com a boca entreaberta. Os lábios e o queixo estão duros. "Agora nos vai contar como ele é"
O nariz é limpo com algodão e aspirado. A higiene da boca é mais delicada. O cadáver chega com a boca entreaberta. Os lábios e o queixo estão duros. "Agora nos vai contar como ele é", diz Chávez. Pega papel e passa o dedo pelas gengivas, com uma leve massagem, para reanimar a expressão. Com uma pinça começa a tirar sujeira da língua. Passa com força e arranca substâncias: "Para o caso de ter vomitado", diz. É preciso evitar bactérias e odores. Depois o barbeia. Puxa a bochecha por dentro da boca para esticar a pele: "Nunca para baixo, sempre para cima ou um pouco de lado", explica. Se você o corta, já não sangra. Mas sairiam manchas depois de um tempo.
O processo é feito sem trejeitos. Chávez lembra um de seus melhores trabalhos. Uma avó morreu enquanto sua família estava de férias. "Ficara por 10 dias em casa no verão e estava em decomposição", diz. A maquiagem dessa vez lhe tomou de 5 a 7 horas de trabalho. "Que pena não ter trazido algumas fotos para você", diz. "A epiderme se desgrudou da derme", acrescenta. Que pena. "Mande-as por email para mim", digo, em um ato de coragem jornalística, no afã de averiguar tudo. Chávez declina.
Chávez deseja reviver a expressão dessa pessoa. Mas não fala com ninguém da família nem vê fotos. Como sabe qual era o penteado? "O cabelo te fala quando você o molha", diz. Abre-se para um lado, para trás. Somente se enganou uma vez. Deixou uma jovem com o cabelo liso e ela o usava ondulado. A família o avisou: "Nenhum problema. Coloquei um pouco de espuma e já deu".
Chávez chegou à tanatopraxia porque seu irmão preparava cadáveres para os estudantes de anatomia da universidade. Não se arrepende: "Não só me sinto orgulhoso, me sinto feliz", diz. Há dois motivos pelos quais acredita que seu trabalho é valioso: primeiro, "vou deixá-lo preparado para que sua família o veja pela última vez", e, segundo, "minhas mãos são as últimas que vão tocar essa pessoa".
O dia em que falei com Chávez estava com sete alunos de maquiagem de mortos. A maioria havia ficado intrigada com o mundo da morte. Uma garota era ainda cabeleireira, sobretudo de mulheres idosas. Suas clientes, ao tomarem conhecimento, tentavam esnobar: "Ah, filha, você irá com os mortos?". A cabeleireira tinha uma grande resposta: "Mas se eles são como você, só que sem respirar".
É a hora de dar-lhe a forma final. O cabelo é secado com secador, é massageado com creme e penteado. Coloca-se um tampão debaixo das pestanas para dissimular o afundamento da cavidade. Agora é preciso tapar os orifícios. Chávez me pede que não explique o detalhe: "Deixe alguma sombra; é como se contassem tudo a quem vai ser operado", diz. É realmente desagradável. "Não trouxeram a dentadura", lamenta Chávez. Coloca em seu lugar uma peça para dar o formato da boca, a qual levanta os lábios e um pouco as bochechas.
O corpo volta ao ataúde com a mortalha, que é uma bolsa com zíper até o pescoço. Em Madri, quase ninguém mais veste os cadáveres. Para levantar a cabeça dele, Chávez cria uma coroa com papel de jornal, que recobre de branco. A metáfora de que o papel morre não podia ter uma evidência melhor.
Retira o caixão da luz branca fluorescente e o leva até uma sala com luz amarela, como a do velório, onde o maquia. Há maquiagem para mortos, mas Chávez usa uma marca para vivos. Com creme oleoso dá tom aos lábios, um pouco de cor e evita desidratação. Tira os brilhos -um cadáver brilha- com pós translúcidos. Tampa algum defeito da pele e lhe coloca bastante colônia Gucci, a de verdade. "Gosta?", me pergunta Chávez.
O arranjo do cadáver terminou. O próprio Chávez o leva à sala do velório. Fora estão os sofás e as mesas, onde a família passará horas. Chávez põe as quatro lâmpadas em forma de vela ao redor do ataúde. Entra um momento na sala familiar para avisar por telefone - está tudo no ponto - e sai pela porta detrás.