_
_
_
_
Flip 2016
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Bem-vindo ao Brasil, meu amigo Karl Ove

Parece impossível se aproximar tanto de alguém sem desenvolver algum tipo de amizade

Rodolfo Borges
O norueguês Karl Ove.
O norueguês Karl Ove.Claudio Álvarez

Bem-vindo ao Brasil, meu amigo Karl Ove. Vai desculpando a intimidade, você não me conhece, mas é como se eu te conhecesse há uns 20 anos, e olha que eu mal terminei de ler o primeiro volume da sua luta.

É engraçado, mas parece impossível se aproximar tanto de uma pessoa sem desenvolver algum tipo de amizade. Que essa aproximação ainda possa ser feita por meio de um livro, hoje em dia, é algo espantoso — e a verdade é que provavelmente nunca haverá nada, fora o contato humano direto e constante, capaz de aproximar tanto quanto a literatura.

Mais informações
Flip 2016 é das mulheres: veja a programação
Subiu o morro como Antônio, desceu como Nem da Rocinha

Karl Ove Knausgård, o "Marcel Proust nórdico”, é como você me foi apresentado. É um cartão de visita perigoso, a gente fica desconfiado. Mas, quatro volumes em busca do tempo perdido depois, Marcel ainda não me deixou chegar tão perto quanto você permitiu em um único livro. Não é qualquer memória ou romance autobiográfico, portanto, que permite tanta intimidade.

Vai ver é esse clima de reality show do Minha Luta que leva a gente a seguir espiando para saber até onde vai a exposição auto-depreciativa voluntária, que eu não sei dizer ainda se é algum tipo de pedido público de desculpas ou a mera tentativa de conviver com os próprios defeitos enquanto ganha algum dinheiro e satisfação intelectual com isso. Ou talvez a gente siga lendo por conta do fascínio do "baseado em fatos reais" — se é que você conta toda a verdade mesmo, e lembra de tudo com tantos detalhes sem precisar romantizar — na esperança de distinguir o que em nós é normal ou uma peculiaridade impublicável

Pois bem, você publica o impublicável sobre sua vida, seus choros ridículos outrora escondidos, suas derrotas, sua fraquezas, seus sentimentos mesquinhos e injustos com pessoas que só querem o seu bem, a tentativa brega do seu pai de recomeçar a vida tarde demais com uma mulher mais jovem, a brutalidade dele na relação com os filhos, o dia em que ele debochou cruelmente da sua língua presa — por que contar a história da língua presa? Sabia que dizem por aí que você tem uma obsessão por fezes? — eu ainda não cheguei nessa parte.

Mas eu não quero te julgar Karl — posso te chamar só de Karl? Porque você já faz isso muito bem, com muito mais naturalidade e honestidade do que eu tinha visto até abrir A morte do pai. Além do mais, depois de começar a ler o livro, por mais incômodo que seja, vez ou outra, se confrontar com esse strip tease da alma, a gente passa a acreditar que essa é a única forma possível de se escrever sobre si mesmo. E mesmo que não fosse: nossa amizade chegou naquele ponto em que eu consigo encontrar virtudes até nos seus defeitos.

Em tempos de acirramento político, de batalhas navais ideológicas em poças d'água, é bom lembrar — e seu livro fez isso comigo — que aquele seu amigo de infância que virou um monstro inquisidor nas redes sociais continua sendo o mesmo moleque que tinha medo de dormir com a luz apagada. Só mudou o motivo do medo dele, além da quantidade de feridas que ele acumulou ao longo da vida. As coisas também vão tensas assim na Noruega e na Suécia?

Bem, isto tudo foi apenas para agradecer sua coragem, celebrar sua irresponsabilidade de expor a própria vida e a privacidade das pessoas mais próximas e reconhecer seu estilo, constatar o seu sucesso e desejar que você tenha uma boa estadia no Brasil e que seja muito bem tratado na Festa Literária Internacional de Paraty. Se sentir que a luta precisa continuar, não deixa de contar como foi o passeio por aqui, no volume sete ou oito.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_