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Coluna
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Crônica do amor covarde

Os enamorados ou enrolados modernos pingam o ponto final nas suas histórias com extrema praticidade

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“Amigo, ela simplesmente chamou um Uber e foi embora, sem choro e nem vela”, conta um chapa, a quem fui socorrer esta semana no consultório sentimental do balcão do Príncipe de Mônaco, (ai de mim) Copacabana.

Os enamorados ou enrolados modernos pingam o ponto final nas suas histórias com extrema praticidade. Pode até doer como nos tempos de Romeu & Julieta —ninguém sabe ler o que se passa em um rosto sem a maquiagem borrada pelas lágrimas do exagero. A praticidade, todavia, me intriga.

Meio indie

“Ela chamou o Uber com aquela arrogância de mina moderna, saca?”, queixa-se o amigo. Não tive como não rir da frase do desalmado, um jovem igualmente prafrentex na casa dos 30, meio indie, barba russa, meio zen, lesado mesmo.

No que pensei na bela independência das mulheres. Cada vez mais atendo, no balcão das dores de cotovelo, homens perdidos diante de mulheres que se acham. Sintoma de uma época.

Tese de sociologia dos costumes à parte, a preguiça sentimental impera. Ninguém tem mais paciência para o drama amoroso. Diante da menor dificuldade ou ensaio de barraco, já era, chama o Uber, vou de táxi, cada um na sua toca do tatu metafísico com mil pensamentos imperfeitos.

Diante da menor dúvida amorosa, o ser humano emburaca mal sabe donde.

Nem aquela bela transa da treta os casais brigados estão aproveitando mais. Nem aquela da raiva! Sabe aquela trepada quando tudo parecia perdido!

Tudo muito prático, diante do menor conflito, cada qual vai ver seu seriado predileto no Netflix. E o que era um ensaio de amor se rende aos muxoxos dos emoticons.

Que fraqueza

E assim, com essa praticidade moderna toda, perdemos o melhor da vida. Se você acha que transa com alguém por alguns encontros, algumas noites perdidas, só rindo

Noves fora o amor líquido, aquela onda escorregadia, ninguém é de ninguém etc, há uma leseira medonha diante da possibilidade amorosa. Qualquer briguinha nego ou nega já caem fora, dão o ninja, o vazare. Que fraqueza.

Que erro, que fracasso, a dramaturgia amorosa exige paciência, um vagar mínimo, um encontro, olhos nos olhos, um homem e uma mulher reinventando suas narrativas particularíssimas, verdades lentas como se, vai saber, sequer se conhecessem à vera. E quem diz que se conhecem?

E assim, com essa praticidade moderna toda, perdemos o melhor da vida. Se você acha que transa com alguém por alguns encontros, algumas noites perdidas, só rindo. Você simplesmente nunca comeu ninguém, sério. Que nada, meu jovem, a verdadeira pornografia (você pode chamar de erotismo, tudo certo) exige intimidade suprema. O sentido do cheiro, do gosto dela na barba, de modo a você passar o dia todo cheirando os dedos e sabendo quanto significa uma mulher de verdade a balançar no trapézio do juízo.

Ela balança no trapézio... Está entre você e a humanidade.

Você a ampara, mesmo que ela não careça nada, ela avoa, você a segura pelo braço como naquele quadro russo do Chagall, minha ideia de amor, com ou sem ideia de modernidade.

Jogo das coincidências

Tudo bem, é só chamar um arrogante Uber e ir simbora, mas, peraí, chance alguma de dramatizar mais um pouco? De saber pelo menos que um veio de Jacarezinho, Paraná, e outro nasceu em São José do Rio Preto?

Por que não chamar aquele taxista que sabe um pouco da sua vida e vai saber que você está triste pra cacete. Ele vai sintonizar na Alpha Fm, SP, e vai tocar, óbvio, uma música que fala muito da pouca vida dos pombinhos juntos, Elton John, essas pérolas.

Ele vai cutucar com alguma pergunta indesejável, tipo indiscrições da bandeira 2. Sem essa da frieza do chofer do Uber, que jamais se mete na existência...

Bom mesmo é Johnny Rivers, Do you wanna dance, pra lembrar quando a gente descia do Sul de Minas ouvindo a Band Vale.

Por que ir embora? Sequer completaram o jogo das coincidências, quando o amor realmente começa. Você gosta disso, eu daquilo. Sim, Bowie, Nina Simone, batemos. Vixe, melhor ainda, ela não é golpista na política, embora seja bastante crítica!

Por que não se conhecerem melhor?

Por que não ouvir aquele disco “Alucinação” do Belchior?

Por que não deixar o Barry White sussurrar na cabeceira daquele motel de beira de estrada?

Por que não ver juntos, no próximo domingo, o terceiro capítulo de “Vynil” (HBO), a série mais sensacional sobre os anos 70?

Rejeição

Chega de preguiça sentimental, minha gente.

Vocês nem têm motivo para dar errado, chega de finalizar precocemente o amor que poderia render pelo menos um samba-canção mela-cueca.

Como assim essa despedida maluca. Para que um casal se despeça, o casal há de ter construído uma ideia mínima de pombolândia.

Há de ter ouvido pelo menos aquela da Daiana Ross e do Marvin Gaye, sabe, nossa trilha, “Love twins”?

Né?

Como essa gente se larga sem ao mínimo se dá chance de uma rejeição de verdade?

Poxa, mal você revelou o seu defeito mínimo de alcova. Só quando conhecemos todas as imperfeições do outro conseguimos amar minimamente.

O conhecimento do auge é para os fracos de alma, os bons amam pelas coisas supostamente erradas.

Em vez de pedir um táxi ou um Uber, vamos experimentar a ideia de dormir juntos, mesmo que, no princípio, isso signifique uma insônia para dois, aquela insônia que você, nossa, pensa “que merda”, devia ter ido embora, mas você foi ficando, agora é tarde, só resta observar como ele(a) respira. Eis uma bela ideia de blues para as noites futuras.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Se um cão vadio aos pés de uma mulher-abismo” (editora fina flor), entre outros dez livros Na tv, é comentarista do programa “Papo de Segunda” (GNT).

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