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Microcefalia e zika vírus: correlação marcada por números imprecisos

Mudança nos boletins do Ministério evidencia incertezas sobre relação entre malformação e vírus

Avó segura neta com microcefalia, no RJ
Avó segura neta com microcefalia, no RJAntonio Lacerda (EFE)

Se o assunto é zika vírus e seus prováveis impactos para os recém-nascidos, é necessário se ter uma coisa em mente: quando falamos dos dados disponíveis atualmente, o terreno é movediço. A falta de padronização na forma como os Estados notificam seus casos de microcefalia, o critério amplo adotado pelo Ministério da Saúde para determinar o que é considerado malformação e a falta de clareza sobre as causas exatas de cada caso confirmado e descartado da condição criam um cenário confuso, que impede a realização de um raio-X mais preciso sobre o que, de fato, está acontecendo no país.

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Nesta quarta-feira, uma mudança na forma como o Ministério da Saúde divulgou seu boletim sobre microcefalia deixou a situação ainda menos precisa. Até a última sexta-feira, o órgão reportava 41 casos confirmados da malformação relacionada com o zika vírus. Neste último boletim, contudo, esse número deixou de ser atualizado e não será mais, sequer, divulgado.

A partir de agora, diz o órgão, só serão informados os casos confirmados de microcefalia, sem se especificar quantos deles tiveram o diagnóstico laboratorial confirmado para o vírus da zika. O argumento do ministério é que esses 41 casos relacionados com o vírus apontados no último boletim não representam a realidade do total de casos. Isso porque ainda não existem testes capazes de assegurar que a mãe de um bebê que nasceu com microcefalia foi contaminada pelo zika durante a gestação. Os testes mais precisos amplamente disponíveis no Brasil só conseguem confirmar a infecção no momento em que os sintomas da doença se manifestam. E, na maior parte dos casos, a mulher se contaminou meses antes de descobrir a malformação cerebral em seu bebê. Além disso, em 80% dos casos a pessoa contaminada pelo zika não desenvolve sintomas, então a gestante pode nem ter desconfiado que teve a doença para poder fazer o exame no momento certo.

"Do total de casos de microcefalia existente no Brasil, a grande, imensa maioria é causada pelo vírus zika”

“As pessoas interpretavam que 41 casos eram relacionados com o zika e o restante não era, mas não é isso. Isso estava levando a uma interpretação diferente. A nossa interpretação é que do total de casos de microcefalia existente no Brasil, a grande, imensa maioria, é causada pelo vírus zika”, disse o ministro da Saúde, Marcelo Castro. Nesta sexta-feira, a Organização Mundial da Saúde afirmou que as evidências de ligação entre o vírus e a microcefalia estão crescendo, mas ainda se levará de quatro a seis meses para se provar.

Atualmente, todos os casos da malformação passam por uma bateria de testes para avaliar se há algum outro agente infeccioso que causou a condição - o vírus da rubéola, o citomegalovírus e a bactéria da sífilis são alguns desses agentes; se nenhum deles aparecer no exame, o vírus da zika se torna o provável causador, mesmo que os testes não o denunciem.

O problema, entretanto, é que, apesar de o ministério afirmar que a “grande maioria dos casos” de microcefalia é causada pelo zika, o órgão não informa quantos dos casos de microcefalia foram provocados por outros agentes infecciosos. O último boletim do ministério aponta que, até o momento, foram confirmados 508 casos de microcefalia causados por agentes infecciosos. Os Estados que mais registraram casos de microcefalia (Pernambuco e Paraíba) dizem que apenas agora estão sistematizando, de forma específica, quantos foram os casos em que a gestante foi infectada por outro vírus ou bactéria, como a sífilis, por exemplo, uma doença que nos últimos sete anos triplicou no país, segundo reportagem da Folha de S.Paulo. O jornal aponta que, em 2008, 7.920 gestantes tinham sífilis; em 2014, eram 28.226.

A última mudança na divulgação dos dados do Ministério aponta para um quadro em que o número de 41 casos confirmados anteriormente é, na realidade, muito mais alto

Mas a falta de clareza não se encontra só dentre os casos carimbados como confirmados. Não se sabe exatamente o que são os casos descartados de microcefalia, que superam em número os do primeiro grupo. O último boletim aponta que, desde o dia 22 de outubro do ano passado, quando os Estados começaram a notificar o aumento de casos da malformação, 837 casos já foram desconsiderados. Uma suspeita é descartada quando a investigação mostra que a medida inicial do perímetro cefálico feita pelo médico estava errada ou quando as alterações cerebrais não foram provocadas por um agente infeccioso.

Contudo, nem os dois Estados com mais casos de microcefalia, nem o ministério, informam quantos desses casos foram descartados porque a medição inicial foi feita de forma incorreta, por exemplo. Duas fontes que trabalham na área da saúde de governos locais informaram ao EL PAÍS que a tendência é que os erros representem a grande maioria desses casos descartados, porque o critério do ministério para determinar a microcefalia é muito amplo –um perímetro cefálico menor que 32 centímetros – e casos de bebês pequenos, com uma cabeça igualmente pequena, que nasceram um pouco antes do tempo, mas não possuem a malformação, podem estar inflando as estatísticas. Na dúvida, os médicos preferem notificar para evitar que uma criança fique sem atendimento adequado por conta de um erro de avaliação. É o que se chama de “hipersensibilidade do sistema”. No final das investigações, é possível que se chegue a conclusão de que o número de casos de microcefalia foi muito menor do que o informado no decorrer da epidemia.

O caso de Pernambuco

Dos 41 casos confirmados anteriormente, alguns detectaram o vírus no cérebro de bebês com microcefalia que nasceram mortos. Outros, no líquido amniótico da mãe. Há, ainda, uma relação temporal: a epidemia de zika no nordeste começou nove meses antes de aumentarem os nascimentos de bebês com microcefalia. Existem também confirmações laboratoriais de que os anticorpos contra o vírus estão presentes em bebês que nasceram com a malformação, o que indica que eles já foram infectados pela doença no útero e desenvolveram essa defesa natural. Esta última técnica, chamada sorologia, era a usada por Pernambuco, Estado responsável por 33 dos 41 casos confirmados.

Segundo a Secretaria Estadual de Saúde do Estado, só foi possível chegar a esse número porque as confirmações eram feitas a partir de testes sorológicos com reagentes desenvolvidos pelo CDC americano. Pesquisadores do centro estiveram no Brasil para treinar especialistas brasileiros no Instituto Evandro Chagas, em Belém, e cederam o material para Pernambuco. Ainda segundo a Secretaria, os dados mais novos apontam que 34 casos foram confirmados para relação do zika vírus com a microcefalia, a partir de 38 testes feitos usando a tecnologia.

Em reportagem da Folha de S. Paulo, a secretária-executiva de Vigilância em Saúde de Pernambuco, Luciana Albuquerque, disse que apesar de precisar de mais confirmações a partir do teste, os números (na época da declaração eram apenas 12) trazem evidências muito fortes da correlação do zika com a microcefalia. A pesquisadora Marli Tenório, da Fiocruz Pernambuco, explica na mesma reportagem que os testes revelaram a presença do IgM, um anticorpo incapaz de ultrapassar a placenta. “Isso nos leva a constatar que o próprio bebê produziu o anticorpo por ter sido infectado pelo zika depois que a mãe foi picada pelo Aedes aegypti”, explicou Marli. Os testes sorológicos já estão sendo desenvolvidos no Brasil pela Fiocruz Paraná, mas o processo ainda deve demorar.

Enquanto novidades não chegam ao mercado, a confusão de dados permanece e o cenário para a circulação de boatos continua fértil. Desde o início da epidemia, já circularam notícias em redes sociais de que o aumento de casos de microcefalia foram causados por vacinas vencidas aplicadas em gestantes pelo Governo federal, por um mosquito transgênico usado para combater o Aedes aegypti e por um larvicida aplicado na água. Todos os boatos foram refutados pelas entidades de saúde por não terem validação científica.

Entenda a confusão com os dados

Nesta quarta, o Ministério da Saúde atualizou os dados de microcefalia. Abaixo, desmontamos o boletim do órgão para explicar a confusão dos números.

  • 5.280: casos suspeitos notificados

São os casos informados semanalmente pelos Estados para o ministério. Um caso é considerado suspeito quando o médico faz a medição da cabeça do bebê e ela tem menos do que 32 centímetros.

Os problemas: Alguns Estados reportam todos os casos de microcefalia. Outros, apenas os de microcefalia que tenham relação com um agente infeccioso. Isso causa uma distorção nos dados apresentados

  • 508: casos confirmados

São aqueles em que o Estado comprovou que a medida da cabeça feita pelo médico no hospital estava correta e que exames de imagem comprovaram que o cérebro do bebê apresenta anomalias compatíveis com a ação de um agente infeccioso

Os problemas: Como não existem testes precisos que possam assegurar em todos os casos que a mãe do bebê foi infectada pelo zika, não se sabe, exatamente, quantos casos foram causados por esse vírus. O Ministério da Saúde, que afirma ter certeza de que 95% dos casos têm relação com o zika,  não informa quantos são os casos em que se assegurou que o agente causador da anomalia foi outro

  • 837: casos descartados

São aqueles em que se detectou que o médico mediu de forma errada a cabeça do recém-nascido ou que exames de imagem mostraram que não há indícios de que a malformação foi causada por um agente infeccioso

Os problemas: Esse número é maior do que o de confirmados e não se conhece com exatidão o que ele representa. O ministério não informa quantos são os casos em que a medição foi errada e quantos são os casos em que a malformação foi provocada por causas não-infecciosas, como a genética ou o abuso de drogas, por exemplo

  • 3.935: casos em investigação

São aqueles casos em que o Estado notificou ao ministério, mas ainda não se confirmou se a medição foi feita de forma correta ou se a anomalia foi causada por um agente infeccioso

Os problemas: a investigação deveria estar sendo feita com mais rapidez para que se conheça o cenário da epidemia com mais precisão

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