Ícaros dos fogões
O suicídio do chef Benoît Violier reabre o debate sobre a pressão colocada sobre os chefs Eles são cobrados pelo êxito midiático e pelos grandes prêmios
Ninguém na profissão poderia imaginar que algo estivesse errado. Em dezembro, seu restaurante, o Hôtel de Ville de Crissier, na Suíça, fora proclamado o melhor do mundo pela La Liste, uma nova classificação criada pelo Ministério de Relações Exteriores da França para competir com o já consolidado ranking da revista Restaurant (50 best). Tinha três estrelas Michelin, havia recebido o Bocuse de Ouro e, na manhã seguinte, deveria participar da festa de gala do famoso guia na França. Joan Roca, chef do Celler de Can Roca, em Girona, na Espanha, conversara com ele em dezembro e o achou feliz, sereno e determinado a satisfazer seus clientes para além do esplendor dos prêmios. No domingo passado, segundo a polícia, Benoît Violier, prestigiado chef suíço no topo de sua carreira, atirou em si próprio com uma espingarda de caça. É o mais recente a ingressar nessa triste lista de cozinheiros queimados pela chama do sucesso de seus fogões.
Poderíamos dizer que a primeira vez foi em 24 de abril de 1671. François Vatel, segundo muitos o inventor do chantilly, cravou uma espada no próprio peito ao perceber que não chegaria a tempo o peixe para o grande banquete de três dias para 3.000 convidados com o que o Príncipe de Condé pretendia entreter a Luís XIV para se redimir de antigos afrontes. Não era uma refeição qualquer, e a pressão acabou com ele. Mas, supostamente, Vatel não foi o único cozinheiro que tirou a própria vida devido à situação de estresse que certos fogões podem chegar a produzir.
Em 2003, o renomado cozinheiro francês Bernard Loiseau também atirou em si mesmo com uma espingarda de caça. O terrível incidente coincidiu com a perda de pontuação no guia Gault-Millau e com um momento no qual intuiu que Michelin poderia tirar de seu restaurante uma das suas três estrelas. Segundo sua viúva, no entanto, o que desestabilizou Loiseau não foi o Michelin, mas sim os comentários na imprensa em torno da “legitimidade” de que uma das estrelas lhe fosse removida. Em abril passado, voltou a acontecer: o norte-americano Homaro Cantu (uma estrela Michelin), excelente chef de vanguarda científica e personagem midiático, enforcou-se em sua fábrica de cerveja artesanal. Ao que parece, alguns braços de sua expansão empresarial não estavam funcionando como ele esperava.
É impossível estabelecer uma relação direta entre os fogões e o suicídio. Nenhuma cifra endossa que a incidência seja maior do que em outras profissões. Além disso, uma decisão tão pessoal é praticamente impossível de decifrar. Mas a pressão midiática e profissional que esses reconhecimentos representam nos últimos tempos, tudo o que ultrapassa o trabalho na cozinha, pesa muito nas carreiras de alguns chefs, afirmam alguns dos profissionais consultados pela reportagem do EL PAÍS (a maioria preferiu o anonimato). Mas a ponto de tirar a própria vida?
Joan Roca, cujo restaurante foi proclamado o melhor do mundo na última edição da 50 best (também em 2013), pede prudência na análise e desvincula o ofício desses ocorridos. Mas também alerta sobre certas perversões acarretadas pelo sucesso. “Não sei qual é a causa de sua morte, e quero acreditar que não tenha sido essa pressão. Mas é verdade que quando se está em um restaurante assim e se torna o número 1, há muita gente que vem para ver se você merece mesmo e para questionar o que você faz. É preciso se distanciar para que essa pressão não afetar você. Nós tentamos relativizá-la ao máximo e filtrá-la. Mas muitos vão permanentemente colocar em xeque o fato de você ser o número 1”, explica o chefe em seu restaurante, ápice absoluto da gastronomia mundial.
As festas onde se entregam esses prêmios começaram como um divertido encontro social, mas se tornaram muito tensas. Até mesmo cruéis, segundo conta quem já participou. Ninguém sabe como sairá dali antes de se sentar. Duas câmeras e dois focos filmam os aspirantes enquanto aparece o número que lhes é dado. Quem um dia foi número 1 pode se ver rebaixado a 50 (como o norte-americano Thomas Keller, na última edição da 50 best) e ter seu rosto retorcido retransmitido ao vivo na sala. O resultado, que afeta diretamente o faturamento do restaurante, é fruto de uma votação arbitrária na qual aqueles que participam não estiveram em lugares suficientes do mundo para estabelecer tal categoria. Como determinar quem é o melhor? Ou por que um restaurante deixa de ser o melhor? Roca acredita que, entre outras coisas, seria bom que aqueles que conquistaram esse prêmio passassem a um lugar de honra e deixassem espaço a novos aspirantes. Mas a morbidade da queda, ver os triunfantes desmoronando, também faz parte deste espetáculo impiedoso.
Andoni Luis Aduriz, chefe do Mugaritz (duas estrelas Michelin), em Rentería, no País Basco espanhol, afirma não sentir mais pressão do que aquela que um empresário comum sofreria. Ele tem seus próprios métodos para se manter na realidade. “Já sei que quanto mais você aparece na mídia, mais te amam e mais te odeiam. Minha proteção é ter a certeza de que o que estou fazendo se justifica por uma evidência clara. Sempre além das opiniões subjetivas de guias, listas e tantas coisas em um mundo muito dado às manchetes e às novidades. O sucesso não é essa ideia que vem de fora e que está relacionada a obter popularidade ou dinheiro. É, na realidade, aproximar seus desejos do modo de vida que você leva”, defende.
Algo parecido ao que opina Fina Puigdevall, do restaurante Les Cols, em Olot, na Catalunha, que tem duas estrelas Michelin. “Comporta umas exigências. Mas se você aprende a compartilhar essa pressão, é algo positivo. É importante que toda a equipe se sinta envolvida. Claro que eu ficaria triste se me tirassem uma estrela, mas não é algo que me deixa obcecada. É um pouco estressante, mas também muito motivador”, diz. Em seu caso, quando recebeu a segunda, seu marido deixou o emprego na Prefeitura para ajudar a manter a excelência no negócio da família.
O problema das listas, dos prêmios e das estrelas é perdê-los. O sucesso e o fracasso nos fogões são vasos comunicantes. Manter-se nesse tipo de pódio significa aumentar os preços, abrir por mais dias, entregar-se a um tipo determinado de cardápio, contratar mais empregados... Um estrutura empresarial difícil de sustentar se uma só dessas fulgurantes peças falhar. A maioria dos restaurantes de três estrelas são deficitários e se veem obrigados a buscar negócios paralelos para seguir de pé, como sempre afirmou Ferran Adrià a respeito do famoso elBulli. Em parte por causa disso, alguns chefs decidiram renunciar às estrelas e começar do zero outro tipo de abordagem da cozinha. Joel Robuchon fez isso em 1996. Foi seguido por Alain Senderens em 2005, Antoine Westremann em 2006, e Olivier Roellinger em 2008.
Na Espanha há vários casos. Miquel Ruiz deu as costas às estrelas para abrir em Dénia (província de Alicante) o El Baret de Miquel, um pequeno bar sem pretensões midiáticas que se tornou um centro gastronômico da região. Os chefs catalães Joan Borràs e Jordi Parramón fizeram o mesmo, por motivos parecidos. O mais recente foi Julio Biosca, dono da Casa Julio, em Fontanars dels Aforins (província de Valência). “Acrescentaram à restauração uma pressão muito exigente, e se você baixa um pouco o nível, fica de fora. Você constrói uma estrutura baseada nesse circuito, e se sai disso não pode aguentar. Sem esse mundo de congressos e apresentações... é muito difícil zerar as contas. Por isso, no nosso restaurante, quisemos voltar à prioridade de satisfazer nossos clientes”, explica ele, por telefone. Julio Biosca renunciou à estrela Michelin e hoje é prefeito de sua cidade.
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