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Eu renunciei à estrela Michelin

Restaurante de uma pequena cidade espanhola pede ao Guia que retire a recomendação

Daniel Verdú
Julio Biosca, maître e proprietário do restaurante Casa Julio.
Julio Biosca, maître e proprietário do restaurante Casa Julio.josé jordán

A primeira vez foi 24 de novembro de 2009. Ele foi para a cama um pouco transtornado por uma degustação de vinhos sem se lembrar do que acontecera naquela noite. Às 8h30 da manhã estava com a cabeça a ponto de estourar e tinha várias chamadas perdidas no telefone. Pensou que era uma brincadeira até que recebeu uma foto do guia vermelho, no qual seu restaurante já figurava com uma estrela. Não a esperavam. Nunca trabalharam para isso. “Em que confusão nos metemos, José Luis”, disse ao sócio e chefe de cozinha. Logo veio a euforia. “Não fica bem dizer isso, mas foi do cacete. Deram uma estrela para nós, que estamos em um lugar em que as pessoas nem sabem chegar!”. Não abriram naquele dia. Nem nas duas semanas seguintes. As férias são sagradas. Mas começaram as reservas em massa, as visitas de colegas, as centenas de conselhos sobre qualquer detalhe, alguma inveja, mais reformas... e também muita esperança e aprendizado. Nunca mais voltou a dormir tranquilo às vésperas do anúncio anual dos estrelados do Michelin. Quatro anos depois, renunciaram à estrela.

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Fontanars dels Alforins é uma pequena cidade de 1.000 habitantes na fronteira entre Valência e Alicante (oeste da Espanha), incrustada em uma região que sempre viveu da agricultura até sucumbir à construção civil. Nos anos 40, a família Biosca inaugurou a Casa Julio, uma hospedaria para viajantes que foi evoluindo com as ideias de cada geração. Julio, maître de 37 anos e quarto na linha sucessória, pensou, em 2005, que devia colocar sua marca no negócio familiar -onde também trabalham a irmã e a mãe- incorporando o que tinha aprendido em seus estudos e durante a estadia no restaurante Zortziko, em Bilbao, de onde trouxe José Luis Ungidos para liderar a nova cozinha que se propunham a fazer. “Procurávamos algo novo a partir da base da gastronomia tradicional. Mas mantivemos as duas velocidades”, explica. Ele se refere ao fato de atenderem tanto gastrônomos que vinham de toda a província como cortarem pão e frios para os sanduíches dos cafés da manhã de fim de semana.

Foram dois anos muito duros. O público de sempre não aceitava aquelas mudanças. Comer porções menores e em diferentes pratos não encaixava com o ideário mediterrâneo de seus clientes mais antigos. “As porções, no centro”, pediam. O boom da gastronomia na Espanha estava apenas começando. “Aqui na cidade isso era besteira”, afirma. A cada semana experimentavam menus diferentes até acertarem. E a fama crescente acabou atraindo, numa noite, um inspetor do Guia Michelin. Foi sozinho, jantou, pagou e pediu para falar com eles. Conversaram por duas longas horas. Era 2007. “Trabalham muito bem. Não tenho nada a recriminar. Ao contrário, pelo respeito que tenho pelo guia prefiro sair”. Porque o problema, diz, não é a publicação, mas “o mundinho que foi se formando ao redor”. “As asneiras que entram por essa porta. E quando todo mundo te diz que você é o melhor, no dia que não te dão a segunda você se aborrece”, diz. Não voltaram a perceber a presença de nenhum outro empregado do Michelin até que receberam a estrela dois anos depois.

O problema não é o guia, mas o mundinho que se formou ao redor

Nem todos vivem sua condição de estrelado com alegria. Ou ao menos não para sempre. Julio não é o primeiro a abandonar esse seleto clube. Em 24 de fevereiro de 2003, o chef francês Bernard Loiseau estourou os miolos com sua escopeta de caça quando começou a correr o boato de que a terceira estrela que ostentava seria retirada. Já estava sofrendo de depressão, mas a viúva culpou a imprensa. O cozinheiro Alain Senderens quis renunciar às suas três estrelas em 2005 e abriu o debate sobre a impostura e as servidões em determinados setores da suposta alta cozinha. “Nesses locais se faz muito teatro. Têm pouco a ver com a vida real. É um sistema que me parece um pouco fora de moda”, lançou. O último foi o chef belga Fredrick Dhooghe, que afirmou este ano que queria ser livre “para poder servir um frango assado sem que eles me digam que esse tipo de prato não é digno de um restaurante com uma estrela”.

Os motivos podem ser ideológicos, práticos, de saúde (como o chef catalão Joan Borràs, que se retirou por causa de um tumor cerebral) ou inclusive econômicos. Porque virtualmente nenhum restaurante desse tipo é rentável. Ferran Adrià explicou que chegou a perder meio milhão de euros ao ano com o el Bulli. Como conta Pascal Remy, um ex-inspetor do guia Michelin que trabalhou para a publicação durante 16 anos e formulou sua visão crítica no livro Um Inspetor à Mesa, quem recebe a distinção “necessitará de mais dinheiro”. Com a primeira estrela costuma chegar o primeiro empréstimo. “Tudo o que se ganha com os novos clientes terá de ser reaplicado. Além disso, para as pessoas é fabuloso quando você ganha a estrela, mas no dia em que você a perde, muitas vezes por motivos que nada têm a ver com a qualidade, o impacto negativo é muito mais forte”, afirma. Para Remy, os restaurantes entram em um círculo vicioso formado pelo guia, as marcas e o próprio estabelecimento que pode impor determinadas ideias preconcebidas. “É uma pressão muito forte e a gente pode deixar de fazer o que deseja em troca de pensar no que desejaria que o guia Michelin fizesse”, diz o inspetor que lembra a relação que existe, “desde o dia de sua fundação”, entre o negócio de pneus dessa empresa e o número de estrelas que tem em cada país. “Encarregaram-me formar a equipe de inspetores que trabalharia no Japão e me pediram que fôssemos generosos. Era um país que até então resistia muito ao Michelin”, recorda. Este jornal tentou solicitar a versão da publicação sem êxito.

“O impacto da estrela é ainda mais forte quando ela é retirada”, afirma Pascal Remy, ex-inspetor do Guia Michelin

O guia foi criado em 1900 como complemento ideal para viajantes que podiam ter um contratempo ou um pneu furado e precisavam de um lugar para comer ou passar uma noite. Hoje, outras vozes como a do crítico gastronômico do EL PAÍS, José Carlos Capel, compartilham a ideia de que a generosidade (ou a mesquinhez) na concessão de estrelas tem relação com a estratégia de negócio da marca de pneus em cada país. Ainda assim, Capel observa a renúncia da Casa Julio como um fenômeno isolado e só encontra aspectos positivos em receber essa distinção. “Para alguns pode causar pressão, mas a maioria dos cozinheiros mataria por uma estrela”, afirma. 

A estrela de Julio durou quatro anos. No verão de 2013, comemorando seu aniversário em um reputado restaurante, viu o garçom se aproximar com um tubo de spray e temeu o pior. “E agora...”, disse a ele e à namorada, com o dedo indicador no botão, “o aroma de xerez”. Aquele restaurante tinha uma estrela Michelin, como o seu. Também tinha um menu degustação e algumas características que tinha encontrado replicadas em uma infinidade de lugares. “Um menu degustação tem de ser como a obra de um artista, só assim tem sentido. O que não pode ser é um menu de racionamento porque então você está vendendo fumaça”, defende Julio. Aquele dia foi o ponto de inflexão. “Senti que queria me afastar um pouco de tudo aquilo”, recorda em uma mesa de seu restaurante.

A Casa Julio renunciou ao menu degustação, mas mantém a qualidade e todo o seu potencial gastronômico

No verão de 2013 escreveram ao guia, mas aparentemente a carta não chegou e a Casa Julio voltou a ter uma estrela em 2014. Mas José Luis e ele já tinham decidido levar seu projeto até o fim. Embora profundamente gratos ao Michelin, estavam cansados. Já não acreditavam em algumas das linhas básicas de um restaurante desse tipo e cada um seguiu seu caminho.

Não saberemos o que teria acontecido se Julio tivesse querido continuar com a estrela. “A qualidade não baixou, mas o cardápio agora é mais simples”, aponta. O lugar tem dois empregados a menos e retirou o menu degustação. Mas mantém seu potencial gastronômico, alguns pratos da etapa anterior e seu proprietário, além disso, leva uma vida mais de acordo com seus princípios gastronômicos atuais. Uma vida fora da grande constelação Michelin.

Os outros 'desestrelados'

Na França, o segundo país com mais estrelas do mundo (depois do Japão), outros cozinheiros já renunciaram aos seus galardões. Joel Robuchon o fez em 1996. Foi seguido por Alain Senderens em 2005, Antoine Westremann em 2006 e Olivier Roellinger em 2008.

Na Espanha houve outros casos parecidos com o da Casa Julio nos quais costuma imperar a vontade de mudar o ritmo, como o caso do Tristán, em Mallorca. Miquel Ruiz também renunciou às estrelas para abrir, em Dénia, o El Baret de Miquel, um pequeno bar de vilarejo transformado no centro gastronômico da região. O chef Joan Borràs renunciou à sua estrela no Hostal Sant Salvador, no Vall de Bianya (Girona), depois do diagnóstico de um tumor cerebral.

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