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O Cantareira saiu do negativo, mas o fim da crise hídrica ainda está distante

Pela primeira vez em 18 meses, o sistema não depende mais do volume morto, a situação, contudo, é muito delicada. O aumento de chuvas por si só não é uma garantia de que o sistema encherá

Para São Pedro, 2015 trouxe ao menos um alento: o santo não poderá mais ser apontado por alguns como o único responsável pela crise hídrica vivida em São Paulo e, em especial, no sistema Cantareira. Concluído o ano, os dados mostram que choveu cerca de 5% acima da média histórica: ajuda fundamental para que o sistema saísse momentaneamente do negativo depois de 18 meses. Por fim, em 30 de dezembro, o reservatório deixou para trás as duas cotas de volume morto. Cerca de dez dias depois, o Cantareira operava com 24,7% (apenas 2,7 acima do volume morto) – 6 meses atrás o índice marcava 15,6%.

Vagner Campos (A2 Fotografia)

A normalização dos trabalhos do santo, contudo, não é a esperada garantia de uma volta à normalidade. Isso porque, a Sabesp tem retirado muito menos água do sistema – o que, ao lado da redução de pressão, é apontado como um dos motivos da falta d’água que tem impactado a vida de milhares de pessoas e também da recuperação de parte do volume de água vista agora. Antes da crise, eram usados entre 33 e 36 m³/s, hoje se usa cerca de 15 m³/s.

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Segundo pesquisa Datafolha de novembro de 2015, metade dos paulistanos revelou ter sofrido com falta d’água naquele mês. Implementada pela Sabesp para reduzir perdas do sistema e para limitar o consumo da população, a redução de pressão tem afetado moradores de áreas altas e de regiões periféricas que, por falta de recursos, carecem de caixas d'água e não podem fazer estoque durante os cortes de até 20 horas no abastecimento. Quando a torneira seca, seca de vez. O governador Geraldo Alckmin (PSDB), que sofreu forte queda de aprovação no ano passado, motivada, entre outros, pela falta d’água nas torneiras, já avisou que a medida é fundamental e continuará a ser usada.

"Ainda estamos muito longe da normalidade, porque continuamos retirando muito pouca água do sistema"

A questão para entender o nó no cano de abastecimento, segundo o grupo Águas Futuras, formado por professores da Unesp e USP, que tem divulgado levantamentos e projeções semanais do Cantareira, reside em três fatores: chuva, quanta água entra no sistema (a chamada vazão afluente), e quanta água sai. Se é verdade dizer que São Pedro não economizou em 2015, também é verdadeiro apontar que o que entrou no sistema é apenas a metade da média histórica. Dos cerca de 3,7 bilhões de m³ acumulados de chuva ao longo do ano, apenas 712 milhões de m³ foram convertidos em vazão afluente, sendo que a média histórica – baseada em um período que vai de 1930 a 2013 – é de 1,4 bilhões de m³.

Só foi em dezembro que a vazão do Cantareira atingiu sua média histórica. É o melhor mês do ano, com chuvas generosas e boa conversão de água para o reservatório. Contudo, Roberto Kraenkel, do Instituto de Física Teórica da Unesp e um dos integrantes do Águas Futuras, lembra que a vazão só foi atingida em consequência da baixa retirada de água do sistema. "Ainda estamos muito longe da normalidade, porque continuamos retirando muito pouca água do sistema, ela só voltará com o reservatório cheio, eficiente, retirando água suficiente”, comenta.

Sem água na zona norte

Vizinhas, Izabel Maggi e Rita Travasso, moradoras de casas no parque Casa de Pedra, na zona norte, região do Tremembé, sofrem com falta de água a mais de um ano. A caixa d’água que segura, na maior parte das vezes, o período de torneira seca é um adianto, mas, mesmo assim, a rotina das duas mudou bastante. Com a água cortada diariamente entre meio dia e 5h30 da manhã seguinte, as duas tem que se virar para fazer tudo que precisam até o almoço. A Rita, por exemplo, lava as toalhas sujas do salão de beleza da irmã e, para dar tempo de fazer tudo e não desperdiçar a reserva da caixa, ela tem que estar na máquina de lavar às 5h30 em ponto, quando o fornecimento volta. Altera a rotina, incomoda, é verdade. Mas a segurança da caixa d’água é ótima. “Agora, imagine quem não tem esse conforto?”, comenta Maggi.

Em novembro, mês em que as chuvas caíram em abundância no sistema, o engenheiro civil e sanitarista Roberto Kachel, que trabalhou por 34 anos na Sabesp, já alertava que a chuva não era a única medida a ser levada em consideração. “O Cantareira tem apresentado vazões abaixo da média desde 2011, não adianta chover se a água não está entrando no sistema”, comentou. Para ele, a devastação da mata original na bacia do Cantareira é uma das explicações para a perda da capacidade do sistema reter água. "É muito positivo recuperar o volume morto, mas certamente ele será usado novamente".

Para Eduardo Mario Mediondo, especialista do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), o fato de que de outubro a dezembro as chuvas foram dentro da média e já em dezembro a vazão histórica foi atingida, é um fato animador e esperado para uma bacia desse porte. No entanto, Kraenkel, do Águas Futuras, acha que qualquer previsão mais otimista deve levar em conta a vazão dos próximos meses. Seu grupo estima que se o ritmo atual de recuperação for mantido (em 2015, 22% do volume total foi recuperado), serão necessários quatro anos para encher completamente os reservatórios.

El Niño

Se alguém imaginou que as chuvas acima da média em novembro e dezembro no Cantareira pudessem ter sido causadas pelo fenômeno climático El Niño, está errado. Mesmo porque, como comenta Marcelo Seluchi, climatologista do Cemaden, no último mês do ano, por exemplo, as chuvas acima da média no sistema não foram uma realidade para o resto do Estado de São Paulo, mas mero acaso. Acontece que a área de influência do El Niño não atinge o sudeste brasileiro, logo as chuvas salvadoras no Cantareira não podem ser creditadas ao fenômeno.

"A temperatura mais alta, por exemplo, pode fazer com que mesmo chovendo na média histórica, a vazão fica abaixo do esperado"

"O El Niño tem um impacto claro com aumento de chuvas na região Sul e uma diminuição de chuva no Norte, mas a região Sudeste fica no meio, assim, em termos gerais, não existe estatisticamente uma influência clara do El Niño em São Paulo", comenta Seluchi. O que se sabe, contudo, é que apesar de não sofrer influência direta, a região também é impactada pelo fenômeno. "Se a área de influência do El Niño passa mais ao norte, São Paulo é atingida, se passa mais ao Sul, é menos", diz Seluchi. O resultado disso é uma dificuldade ainda maior de fazer previsões para o Estado, que, por questões topográficas e de latitude, já tem alta complexidade. "O limite da confiabilidade é de sete dias".

Nos relatórios do Cemaden sobre o Cantareira, contudo, alguns prognósticos futuros, tendo como base médias históricas de chuva, são apresentados. Alguns cenários são muito positivos, outros nem tanto. Um dado que chama atenção é que mesmo quando a média de chuvas é levada em consideração para as projeções, a quantidade de água que entra no sistema não fica na média. "A temperatura mais alta, por exemplo, pode fazer com que mesmo chovendo na média histórica, a vazão fique abaixo do esperado", completa Seluchi.

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