A ressurreição do Estado profundo
Líder pró-curdo aponta para a nebulosa de ex-membros da espionagem e a ultradireita
A Turquia retrocedeu 40 anos na sua história neste sábado. A imagem de modernidade oferecida por grupos de jovens fazendo uma dança curda num ato em favor da paz, na praça da estação do trem-bala em Ancara, voou pelos ares com a explosão de duas bombas de origens obscuras neste sábado. Os turcos voltam a ficar com o coração na boca, a três semanas de eleições decisivas para o futuro do país. Está em jogo a manutenção de um sistema de equilíbrio de poderes frente à imposição de um modelo hegemônico em favor do presidente Recep Tayyip Erdogan.
O voto do medo paira novamente sobre uma população que parecia ter esquecido os anos de chumbo da década de setenta, quando os confrontos entre grupos violentos de ultraesquerda e os Lobos Cinzentos da ultradireita semeavam o terror diariamente; uma população que já via como longínqua a era dos golpes de Estado e da sangrenta insurgência curda nos anos oitenta e noventa.
Apesar do atentado que causou quatro mortes e comoveu Diyarbakir, a capital do Curdistão turco, às vésperas das eleições de 7 de junho, os eleitores desafiaram o medo e negaram a maioria absoluta ao partido islâmico e conservador de Erdogan. O milagre foi obra de um jovem líder nacionalista curdo, Selahattin Demirtas, ao superar o restritivo piso de 10% que permite o acesso ao Parlamento, graças aos votos de muitos turcos liberais e progressistas que viam em seu partido o único freio possível à ambição de poder do presidente da Turquia.
Desde então, o sangue não parou de correr. Um novo atentado em Suruç, junto à fronteira síria, custou 33 vidas em julho, e a ruptura do cessar-fogo entre a guerrilha curda do PKK e o Exército turco deixou centenas de mortos em ataques e atentados nos três últimos meses. Para muitos eleitores, o partido pró-curdo HDP dificilmente poderá ser associado a uma alternativa democrática na eleição de 1 de novembro. Como em cada ocasião que dispara o sentimento nacionalista turco, os símbolos nacionais tornaram a dominar a paisagem cotidiana.
O atentado deste sábado em Ancara, com um balanço de vítimas sem precedentes inclusive nos anos mais negros do terrorismo na Turquia, ameaça reduzir as chances políticas de Demirtas e pode contribuir para consolidar o “sultanato” de Erdogan até o centenário da República da Turquia, em 2023.
Quando o PKK se dispunha a declarar um cessar-fogo eleitoral, as explosões na capital turca dinamitam também a perspectiva de um final de campanha sem violência. O habitualmente moderado Demirtas foi contundente ao atribuir o atentado a uma “máfia do Estado”. O chamado “Estado profundo”, uma nebulosa composta por ex-membros dos serviços de segurança e espionagem e por setores ultranacionalistas e de extrema direita, estaria atuando, segundo o líder do HDP, como um “assassino em série”.