Uma ‘dominatrix’ ao resgate do pornô britânico
Artista encabeça a luta contra a regulamentação dos conteúdos audiovisuais para adultos


Envolver-se com regulação do pornô é complicado. A pessoa acaba tendo de decidir que práticas sexuais são aceitáveis e quais não são. Acaba de ocorrer no Reino Unido, onde foi introduzida uma emenda na lei que regulamenta a pornografia. Desde o dia 1 deste mês os vídeos pornôs produzidos no país para a Internet têm uma série de limitações. Ficam proibidos os açoites fortes nas nádegas, o uso de chicotes ou varas de açoite, a urolagnia (mais conhecida como chuva dourada) e sentar-se na cara do outro. O sexo oral praticado sobre uma mulher “com as vias do ar obstruídas”, seja isso o que for, é considerado “não aceitável”. A ejaculação masculina, tudo bem: a feminina, proibida.
O que a nova emenda faz é submeter a produção audiovisual pornográfica para Internet à legislação que rege a pornografia em DVD. Mas ocorre que os estúdios independentes nunca produziam DVD precisamente porque consideravam que a normativa era muito restritiva, e quem a supervisiona é um órgão privado, a ATVOD, que, segundo seus críticos, aceita qualquer prática de pornô mainstream, mas rejeita as menos habituais. Nas palavras da colunista Zoe Williams, do The Guardian, “tolera a degradação sempre que se trata da mulher”.
A indústria do pornô está em pé de guerra, mas o debate a transcendeu. Trata-se, para muitos, de uma discriminação às mulheres e às práticas sexuais minoritárias. Um atentado à igualdade de direitos. E uma das vozes mais elevadas na resistência é uma “dominatrix, artista e ativista” nascida em Bilbao (Espanha), que já ganhou batalhas contra as autoridades britânicas.
Itziar Bilbao Urrutia chegou a Londres com 19 anos. Viveu em casas invadidas e acabou em uma faculdade de Belas Artes. “Como todos os estudantes de artes, eu precisava trabalhar”, lembra. “Eu transitava no ambiente de clubes fetichistas de Londres, e comecei a trabalhar como dominatrix, que é uma mulher que cria dominação sexual feminina para clientes que pagam pelos seus serviços. Era bem pago, e me parecia melhor do que trabalhar em um bar ou em uma loja.”
Por volta de 2002 Itziar criou uma página na Internet para promover seus serviços. “Então, comecei a trabalhar a imagem, a fazer vídeos, e me dei conta de que estava expressando meus interesses conceituais como artista”, explica. “Temas como a identidade, o gênero, o feminismo, a representação da sexualidade, a sexualidade alternativa. Os dois mundos se uniram: minha prática artística e meu trabalho como dominatrix.”
Assim nasceu, há quatro anos, o Urban Chick Supremacy Cell, algo como a Célula da Supremacia da Garota Gostosa Urbana. Uma página de vídeos fetichistas por assinatura, que esteticamente apresenta uma imagem de ativismo político, “inspirada em mulheres como Valerie Solanas”. “Adotei a imagem de uma célula terrorista underground que defende uma supremacia feminina absoluta”, explica Bilbao, que encontrou no fetichismo e no BDSM um veículo para expressar suas ideias artísticas e políticas.

Mas aqui no Reino Unido as autoridades não se fixaram no lado artístico. Em junho de 2013 ela recebeu uma carta da ATVOD, a autoridade independente que regulamenta os vídeos pagos, solicitando-lhe o pagamento de uma taxa para postar seus “programas de televisão” na Internet. “Resolvi olhar a lista dos estúdios de vídeo que haviam sido denunciados”, recorda Bilbao, “e me dei conta de que a imensa maioria pertencia ao nicho do vídeo adulto fetichista e, mais concretamente, em que a mulher era a dominadora. Isso me soou como uma perseguição”.

A artista levou então o assunto ao conhecimento da Backlash, uma organização de defesa da liberdade de expressão sexual, com a qual colabora desde 2009. Ali viram que havia uma questão e puseram o assunto em mãos do advogado Myles Jackman, mais conhecido como “o advogado da obscenidade”, especialista em liberdade sexual e pornografia extrema do escritório Hodge, Jones & Allen.
Depois de meses de litígio – e de “interessantíssimas conversas sobre os limites da arte com escriturários da administração”, nas palavras de Bilbao– ganharam o caso e a página da web reabriu em meados deste ano. Eles os convenceram de que aquilo era um meio artístico e o estúdio de Itziar Bilbao Urrutia se transformou no “único do Reino Unido que pode postar conteúdo adulto na Internet”.
Aquele longo litígio, acredita Bilbao, foi um campo de provas para a nova legislação que entrou em vigor em 1 de dezembro. E agora ela está coordenando os estúdios de vídeo britânicos na luta contra uma normativa que considera “discriminatória em relação ao gênero feminino e às sexualidades minoritárias”. “Passaram a catalogar práticas sexuais”, opina Bilbao. “E as que não podem ser mostradas são principalmente a da sexualidade gay, queer e de dominação feminina. No pornô dos grandes estúdios essas práticas não aparecem, por isso eles ficam imunes”. E esse produto, que para Bilbao é mais daninho, é o mais acessível. “O pornô mainstream”, explica”, exibe mulheres objetificadas, com físicos sexuais caricaturescos. É uma glorificação do pênis.’

Na opinião de Bilbao, por trás disso está “a censura geral aos conteúdos na Internet”. “Começam pelo pornô”, afirma, “porque dá muitos votos apelar à proteção das crianças. Mas não se pode esperar que o Estado aja como babá. O pornô é como o canário na mina de carvão”.
Essa artista, que está há quase 30 anos em Londres, considera que “os britânicos são muito sinuosos para o sexo”. “Como os bascos”, acrescenta. “A mim, sua complexidade sexual atrai, mas eles têm uma relação muito difícil com ela. Lembro o dia em que contei à minha mãe que eu ia a clubes fetichistas. Ela ficou pensando um momento e disse: “É que os ingleses são assim, não é mesmo, filha?”.