O efeito viral de dizer: “Eu fui estuprada”
Vítimas de abusos denunciam seus casos na rede, depois que o assunto virou pauta com a pesquisa sobre estupro que aponta para a ‘responsabilidade’ das mulheres
“Encorajada pelos exemplos de outras mulheres, percebi o quanto falar também se faz importante pra mim. Soprar também a minha história ao vento, para que nunca mais entre por outras janelas. Família, sei que quase todos vocês saberão disso apenas agora, junto a todo mundo. Mas, saibam, o faço com toda a serenidade no coração”. A musicista Mariana Tavares, de 28 anos, começava assim um depoimento no Facebook que deixou perplexos os seus amigos e parentes. Vítima de abusos sexuais por parte de um amigo da sua avó quando era criança, manteve o segredo até 31 de março.
“Achei que se eu conseguisse falar poderia ajudar outras pessoas que não conseguem. Na hora de postar minha história, vi que teria que confrontar coisas como o fato da minha família não saber de nada de algo que só contei para minha mãe na adolescência e que só minha irmã e três pessoas próximas souberam depois. Senti medo, pelos outros e por mim, mas achei que tinha que me posicionar”. O passo de Mariana está sendo imitado por muitas outras mulheres que reagiram à reflexão sobre a violência sexual que se abriu no país.
A divulgação dos últimos abusos sexuais no metrô de São Paulo e a revelação da pesquisa do Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (IPEA), realizada em junho do ano passado, que mostra que 65% dos entrevistados -na sua maioria mulheres- concordava com o fato de as mulheres que vestiam roupas curtas mereciam ser atacadas, colocou a violência sexual sob os holofotes. O assunto é cotidiano, mas é uma realidade mantida em silêncio. Segundo um estudo também do IPEA há 527.000 vítimas anuais de abuso sexual, e apenas 10% chega à delegacia. O pior: 70% das vítimas são crianças ou adolescentes, isto é, menores que, normalmente, sofrem abusos no seu próprio lar.
A indignação diante destes números e a afirmação de 58,5% dos entrevistados na pesquisa de que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros” promoveu a criação de campanhas espontâneas, como a da jornalista Nana Queiroz que, seminua, pintou o próprio corpo com uma frase que já é viral e que foi assumida também por homens: “Eu não mereço ser estuprada”. Queiroz chegou a receber o apoio virtual da presidenta Dilma Rousseff após ser ameaçada repetidas vezes por internautas que se sentiram atingidos pela sua mensagem.
O que levou Mariana a falar não foi o resultado da pesquisa e sim, precisamente, as vozes daqueles que ameaçam, os perfis reais, e também virtuais, dos que culpam a mulher da sua própria agressão. “ Eu não senti uma grande surpresa com a pesquisa. O resultado foi algo que vemos todos os dias na rua. Mas comecei a acompanhar na Internet as reações à campanha dessa jornalista, e comecei a ver comentários de adolescentes falando claramente que mulheres merecem ser estupradas, uma quantidade enorme de meninas de 15 anos afirmando isso. Me perguntava se realmente elas sabiam o que estavam falando. Esse sentimento foi me batendo, e resolvi me posicionar, senti uma necessidade pessoal de me confrontar com aquilo”, relata Mariana.
Seu desabafo motivou mais mulheres a falarem. “Recebi muitas mensagens. De mulheres da minha família a amigas que me contaram histórias parecidas. Várias desconhecidas se abriram pela primeira vez comigo”, disse. Essa reação de compartilhar, segundo os especialistas, responde a uma espécie de efeito dominó. “Eu percebo no consultório que quanto mais se fala de violência sexual, mais as pessoas lembram de algum episódio no seu passado”, explica o psicólogo Luis Toledo que identifica o sentimento de culpa como a principal barreira para revelar o abuso.
“Essa experiência traumática subjuga muito a mulher. Ela não tem um apoio social para poder dizer o que aconteceu sem que remeta a uma culpa ou a uma participação no abuso, mesmo que seja passiva. Quando alguém fala, abre um caminho que torna a experiência humana”, explica Toledo. “É uma luta muito grande uma pessoa deixar esse status de violência e torná-lo público. Mas provoca outras pessoas a seguirem o exemplo”.
Daniela Lopes, pedagoga de 38 anos, também se confrontou com seu passado esses dias, porém há oito anose não esconde que sofreu abusos duas vezes. A primeira com cerca de seis anos nas mãos do zelador do seu prédio. Sua primeira confissão nas redes sociais veio à tona depois do escândalo do diretor Woddy Allen, acusado pela sua filha de abuso sexual. A segunda, nessa semana, com uma carta aberta intitulada “Querido estuprador” na qual conclui que só estaria segura no útero da sua mãe, isso sim, se ela estivesse vestida e em casa. “ O resultado dessa pesquisa me mobilizou, saí de casa e vi como meus amigos pensavam também que estava nas mãos das mulheres evitar os abusos. Hoje não consigo me abster. Falar é como se livrar de um câncer”, explica. “Por conta desses episódios, eu me senti uma pessoa muito insegura na vida. Colocar para fora o que me aconteceu me devolveu uma segurança nos relacionamentos, porque eu sempre pensava que a outra pessoa estava acima de mim. Recuperei o poder de decisão que me tiraram”, explica Daniela.
Mariana, Nana e Daniela se tornaram a cara visível do assunto, mas não são avis rara. Perguntem a qualquer uma. Os casos se repetem aqui e ali. “Todas as minhas amigas têm um episodio parecido em diferentes graus de gravidade. Depois de publicar o texto uma pessoa muita próxima da minha família me escreveu para me dizer que iria contar para todos o que aconteceu com ela. Todas as mulheres que eu conheço têm alguma história. É surreal que algo maluco seja regra”, resume Mariana.
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