_
_
_
_

As fronteiras de um país bipolar

A história da Ucrânia gira em torno de um zona de influência russa, no leste, e outra europeia, no oeste Ambas experimentaram a repressão soviética

Pilar Bonet

O Estado ucraniano que surge do desmoronamento e desaparecimento da União Soviética, em 1991, é uma soma de territórios com diferentes biografias históricas e diferentes influências externas, as quais se sobrepõem, se entrelaçam e se dissolvem ao longo dos séculos. O primeiro Estado dos eslavos orientais, a Rus de Kiev, no século IX, está nas raízes culturais e da identidade da Rússia e da Ucrânia, daí a importância que tem Kiev como ponto de referência para os dois países vizinhos, pois foi ali onde o príncipe Vladimir, o Grande, adotou o cristianismo de Bizâncio, no ano 988.

Ao longo dos séculos, o território da atual Ucrânia foi cenário dos avanços e retrocessos de diversos conquistadores, como o Estado Polaco-Lituano, a Rússia czarista, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. Em suas expansões, esses conquistadores incorporavam a seus domínios povos de lealdades mutáveis, que conservavam, no entanto, suas próprias características e seus próprios interesses. A Ucrânia é a terra dos cossacos, homens guerreiros que serviam a um ou outro invasor, selavam e rompiam alianças, seguindo sempre seus próprios interesses e aspirando à sua própria independência. A tradição cossaca pode ser vista como um dos componentes da identidade ucraniana atual, e seu estudo ajuda a compreender atitudes que se refletem nos processos políticos contemporâneos.

Na história da Ucrânia houve várias tentativas de criar Estados, sendo as mais notáveis o Estado cossaco de Bogdan Khmelnitski, que pactuou com o czar da Rússia Alexei Mikhailovich (1654), e, no século XX, os projetos da República Popular da Ucrânia e da Ucrânia Soviética, ambos em 1918.

A influência do Império Austro-Húngaro e do império czarista se reflete nos dois mundos culturais que preponderam na Ucrânia de hoje. Em torno da influência austro-húngara predomina a tradição dos uniatos (greco-católicos de rito oriental, que se submetem ao Vaticano), e, no entorno dominado pelo império czarista, a religião ortodoxa.

Também os idiomas dividem a Ucrânia. O idioma ucraniano se beneficiou da diversidade aceita nos territórios do Império Austro-Húngaro e foi reprimido pela política czarista. Daí que nos territórios do oeste o idioma ucraniano seja predominante, e no leste seja o russo, embora entre essas duas línguas haja diversas variedades dialetais (ou surzhik) que combinam ambas.

O território da Ucrânia (mais de 603.000 quilômetros quadrados) consolidou-se como uma unidade administrativa em época da União Soviética. A Ucrânia foi uma das 15 repúblicas socialistas soviéticas federadas sob a URSS e formalmente era um país com representação na ONU (assim como a República Socialista Soviética da Bielorrússia), voluntariamente integrado à União Soviética. Em virtude do pacto da URSS com a Alemanha nazista no outono europeu de 1939, Stalin incorporou à Ucrânia territórios procedentes do desmoronamento do Império Austro-Húngaro, em 1918, que tinham se tornado parte de países como a Polônia e a Romênia, e também territórios que tinham pertencido ao império czarista. Foi assim como se somaram à Ucrânia os territórios da Galícia oriental, a Bukovina do Norte e Volhyna. O fato é que os dirigentes soviéticos riscavam os mapas conforme o seu desejo, e assim privaram a Ucrânia da Transnístria, para formar o que atualmente é a Moldávia, e também de territórios orientais que agora fazem parte da Rússia. Em 1946, Stalin uniu a Ucrânia à região da Transcarpácia cedida à URSS pela Tchecoslováquia. Em 1954, Nikita Khruschov incorporou-lhe a península da Crimeia, pertencente à Rússia a partir do século XVIII, e, antes, um florescente canato tártaro.

Este conglomerado multicultural forma hoje um país de 24 províncias e uma região autônoma (Crimeia), onde o único idioma oficial é o ucraniano, embora existam outras línguas reconhecidas nas regiões, tais como o russo. Na Crimeia, que goza de um status especial, o russo é de fato uma língua co-oficial.

Os ucranianos do leste e do oeste sofreram, todos eles, a experiência repressiva soviética. No leste, a fome, ou Golodomor, que causou a morte de milhões de pessoas no começo dos anos trinta, e, no oeste, as deportações para a Sibéria que se seguiram à anexação soviética, em 1939, e depois da Segunda Guerra Mundial.

Entre as duas Ucrânias é possível encontrar denominadores comuns, e, em épocas de paz e prosperidade, ambas as partes tendem a se aproximar. Mais do que isso, as duas Ucrânias gostariam de ter um governo democrático, acima das diferenças culturais. Entretanto, quando os fios se tensionam e são expostos os conflitos de lealdades, todos e cada um dos ucranianos tende para as suas referências tradicionais, seja na Europa ou na Rússia.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_