Sem material de proteção, profissionais de saúde relatam apreensão após mortes de dois enfermeiros em São Paulo
“Nunca tinha visto meu marido ter sequer uma dor de cabeça”, diz viúva de Eduardo Gomes da Silva, que trabalhava no Hospital Tide Setúbal. Ministério da Saúde admite problema com estoques de máscaras e aventais
Os falecimentos de um auxiliar de enfermagem e de um enfermeiro, ambos com suspeita de Covid-19, deixaram apreensivos seus colegas da área de saúde que atuam na rede municipal de São Paulo, que reclamam da falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), como aventais e máscaras cirúrgicas, fundamentais no combate ao coronavírus. Eduardo Gomes da Silva, de 48 anos, auxiliar de enfermagem no Hospital Tide Setúbal, e Idalgo Moura, de 45 anos, enfermeiro no Hospital Municipal do Tatuapé, trabalhavam sem o material necessário. Ambos faleceram na última segunda-feira (31/03), e em seus atestados de óbito consta insuficiência respiratória como causa da morte. O Brasil já registra 7.910 casos confirmados e 299 óbitos por causa de coronavírus, e há um reconhecido déficit de testes para detectar a doença, além da demora para obter os resultados dos exames realizados.
“Sem EPIs, os profissionais da saúde estão condenados pelo coronavírus”, afirma Valdomiro Marques, técnico em segurança do trabalho do Hospital de Pirituba, que, nas últimas semanas, tem percorrido os hospitais municipais em busca de relatos dos colegas sobre a falta de proteção. Apesar de São Paulo ser o Estado com o maior número de insumos médicos, segundo o Ministério da Saúde, o ministro Luiz Henrique Mandetta reconheceu na quinta-feira a dificuldade na compra de materiais como máscaras, devido ao superaquecimento da demanda internacional pela pandemia.
Eduardo Silva gerenciava o Atendimento Médico Ambulatorial (AMA) e parte do serviço prestado no pronto-socorro do Hospital Tide Setúbal. Na semana em que ele se sentiu mal, mais precisamente no dia 20 de março, quando duas das três UTIs do local estavam ocupadas. “Não parava de chegar gente”, conta uma enfermeira que prefere não se identificar. Eduardo atendeu pelo menos um paciente diagnosticado com Covid-19. “Depois, ele voltou para casa e logo teve febre. Foi fazer exames e mandaram ele ficar em isolamento em casa. No dia 24, ele piorou, voltamos para o hospital e ele foi logo entubado”, conta Rosemere Alves Martins, viúva de Eduardo.
Ela descreve a evolução da doença como “assustadora”. “Eu nunca tinha visto meu marido ter sequer uma dor de cabeça. Quando ele começou a ter falta de ar, piorou muito rápido. No dia em que foi internado, a pulsação dele chegou a 70 batimentos por minuto. Liguei para uma amiga, também enfermeira, e ela me disse: 'Corre para o hospital, senão ele vai morrer na sua casa”. Rosemere e os três filhos puderam se despedir de Eduardo em um enterro que durou dez minutos, com caixão lacrado, sem funeral. Sua família não foi testada para o coronavírus. “Eu fiz uma tomografia e me passaram uns antibióticos, que estou tomando. Graças a Deus, parece que estamos bem”, diz a viúva.
Rosemere conta que Eduardo não bebia, não fumava e nem tinha doenças prévias. Os colegas de trabalho também ficaram surpresos com seu falecimento. “Era uma pessoa com muita energia. Na verdade, estamos em pânico, porque ver alguém que aparentemente era saudável morrer de uma hora para outra é aterrorizante”, diz um enfermeiro que trabalhava com Eduardo e que prefere o anonimato. Esse servidor municipal conta que, dois dias depois do colega ser internado, os trabalhadores —que se recusaram a entrar no plantão sem avental impermeável— receberam três máscaras comuns, dois pares de luvas e um avental impermeável para um plantão de 12 horas. O recomendável é que as máscaras sejam trocadas a cada duas horas.
"Enfrentamos um problema de biossegurança. Nosso avental não pode ser descartável, tem que ser impermeável, tem que ter gorro, óculos-viseira, e não estão nos fornecendo isso. Tem lugar que pede para ficar um plantão inteiro com a mesma máscara e o mesmo avental durante 12 horas”, reclama uma técnica de enfermagem do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM).
No Hospital Municipal Dr. Benedito, a situação se repete. “Aqui, estamos usando mesmo avental de quem recolhe as roupas sujas. Metade das nossas costas fica desprotegida e temos que improvisar. Colocamos e retiramos o avental pelo pescoço ou então cortamos com uma tesoura e remendamos a parte de trás com esparadrapos para evitar a contaminação quando tiramos ele”, descreve um técnico de enfermagem do local.
O técnico em segurança do trabalho Valdomiro Marques explica que o ideal seria que os trabalhadores dos setores administrativo, de limpeza e de segurança dos hospitais, prontos socorros e UPAs trabalhassem com equipamento de proteção individual. “Esses trabalhadores, bem como toda a população, encontram-se em pânico, estão mentalmente exauridos, muitos falam em solicitar exoneração ou demissão dos cargos”, diz.
Terceirizados
Tanto Eduardo Silva quanto Idalgo Moura trabalhavam nas AMAs (Assistências Médicas Ambulatoriais) anexas aos hospitais, que funcionam como um pronto-socorro. Ambos trabalhavam na SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que presta serviços à rede municipal de saúde. Nas equipes dos hospitais de São Paulo é consenso que os empregados terceirizados são os mais vulneráveis. “Eles têm medo de perder seus empregos, então se submetem a trabalhar mesmo sem EPI. Já os funcionários públicos somos mais exigentes”, conta o enfermeiro colega de Eduardo, já citado na reportagem. Sua principal reclamação é sobre a falta de óculos de proteção e de máscaras N95, que têm um filtro de ar que bloqueia pelo menos 95% das partículas em suspensão e ajuda na proteção contra doenças de transmissão aérea, como a Covid-19.
Em nota, a SPDM afirma que ainda não foi possível confirmar que os trabalhadores faleceram em decorrência da Covid-19 e que eles e suas famílias receberam “toda a assistência necessária ao caso”. Já a Gestão Bruno Covas afirma que não comenta casos específicos.
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